quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Albertiana

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Uma das minhas janelas preferidas,
sempre aberta para a igreja de São Francisco em São João del-Rei



Não sei o que seria de mim sem as paisagens, sem as janelas que as oferecem aos meus olhos quando tudo mais é triste, é feio, é sórdido. Caminhos difíceis, estradas por demais compridas cumpridas por demais; uma, duas, três casas vazias... A janela, generosa, me consola; deixa-se abrir e me revela outro mundo - mais bonito. Então me desprego de mim, deslizo pelo fio invisível que me une ao ponto de fuga, as asas desdobradas abarcando todas as paralelas, num grande leque aberto.  E, por um instante, é em mim que a beleza habita, no acordo fugaz entre a paisagem de dentro e a paisagem de fora.
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

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Meu olhar caminhante no caminho de terra pra Arcângelo. Agosto de 2009



 
Fim de estrada. Só.
Sem espaço para os passos.
Adiante e atrás: pó.



(Cyro Armando Catta Preta,
"Desolação", in Haicais)

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domingo, 20 de fevereiro de 2011

Outra rima para flor

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Uma rosa à véspera do fim. Foto original da Bela.




 A notícia abriu a força
as persianas do peito
e as asas que vinham de fora
e as asas que vinham de dentro
terminaram por se ferir.
O corpo, sacudido,
não podia mais voltar pra casa.
Todo um infinito
de coisas, momentos como ímã,
ficou rodando à deriva
no espaço tenso
em que o silêncio,
um gás lacrimogênio, insiste.
Menos no reduto
onde o luto resiste,
essa flor que dói,
não pára de se abrir.



(Claudia Roquette-Pinto, in Corola)

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Endecha

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Leonardo da Vinci. detalhe do Retrato de Ginevra de' Benci. c.1474-1476.
óleo sobre madeira; 38,8x36,7cm. Washington, National Gallery



Do pequeno e ao mesmo tempo magnífico detalhe pintado por Leonardo da Vinci se apreende o todo: a moça é triste.
É triste nos lábios, é triste nos olhos imóveis e no olhar distante, é triste no movimento de alma que se pode ler com facilidade e que faz acordo com a paisagem outonal ao fundo. Declínio da luz, que lança seus derradeiros reflexos no dourado dos cabelos, nas folhagens.
Chama-se Ginevra e é jovem e melancólica exatamente como outra Ginevra de quem já falei. O ginepro-junípero, a árvore da família dos ciprestes de onde deriva o nome próprio (Ginevra-Genebra), cria uma cortina escura que emoldura a figura e a destaca com precisão.





Leonardo parece ter tentado o gênero do retrato pela primeira vez nesta obra, provavelmente ainda nos últimos anos de sua passagem pelo ateliê de Verrocchio em Florença. Portanto, cerca de trinta anos antes da realização de sua obra-prima, a Monalisa. Experimentava a técnica, buscava a verdade da percepção visual. Até os dedos ele usou aqui para espalhar e esfumar a tinta a óleo. Se o efeito geral da interpretação da figura é algo gélido, escultural, o detalhe da textura e da expressão dos lábios mostra o quanto Leonardo ia no caminho certo.

Esta pintura talvez tenha sido encomendada como um retrato nupcial para o casamento de Ginevra de' Benci - realizado aos dezessete anos -, ou talvez esteja ligada ao amor platônico que a jovem deixara no círculo dos Medici, Bernardo Bembo. A leitura e interpretação da imagem pintada no reverso do painel sugere que o retrato deve ter sido encomendado em âmbito mediciano:

Um ramo de loureiro à esquerda (emblema de Lorenzo de' Medici), um ramo de palma à direita (simbolizando a virtude e a castidade), ambos entrelaçados no alto contra um fundo de falso pórfiro (a pedra vermelha, de significado nobre, predileta de imperadores), ambos formando um arco que protege um pequeno galho de junípero (a própria Ginevra). Arrematando o conjunto, a inscrição VIRTVTEM FORMA DECORAT - a virtude adorna a beleza, um moto que remete ao de Bembo VIRTVS ET HONOR.
Disso se infere o significado da imagem triste. Sob a proteção de Lorenzo, um amor vingou, mas não pôde florescer. Ela se casa com outro, ele retorna a Veneza.


(A palavra 'endecha' aprendi com a Adélia Prado.
O recorte dos lábios de Ginevra me remetem a essa palavra, por sua concentração de beleza e tristeza.
Endecha: composição poética sobre assunto melancólico; canção triste, de tom lamentoso e sentimental)



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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Je voudrais bien...

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Lindo Paul Klee que descobri por estes dias: Jardim de rosas.1920. 
 óleo sobre cartão; 49x42,5cm. Munique, Städische Galerie im Leibachhaus




...la vie en rose

(Amor feinho eu não quero não.)


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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Feinho, feinho...

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F. Botero. Um casal. 1995. Óleo sobre tela; 117x96cm.



Mais uma vez, Adélia Prado


Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quanto haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
 o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.



(Adélia Prado, "Amor feinho", in Bagagem)

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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Tenebrismo

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Uma foto recolhida há muito da net, não sei de quem,
 com a legenda de "uma tarde quente em Pisa". Um gatinho italiano tomando sol.



A metáfora da luz é sedutora, é tão perfeita e ao mesmo tempo tão óbvia, que quase deixa de ser metáfora. Há os ilustrados, os iluminados, a luz da razão, a revelação pela luz... A história tem inúmeros exemplos de soberanos identificados com a luz divinizada, apolíneos... Os românticos cantaram a lua, suas projeções ambíguas, seus mistérios e segredos entrevistos; e os lunáticos perderam a luz da razão. No entanto - perdoem a obviedade -, a sombra não pode ser sem luz, é parte dela, e nem a luz seria luz sem sombra. E é ali, na observação dessa dupla natureza, que a compreensão se dá.

A verdade, a clareza, muitas vezes, está na sombra.




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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Valentine's day

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Francesco Hayez. O beijo.1856.
Óleo sobre tela; 112x88cm. Milão, Pinacoteca di Brera





Dia dos namorados noutras paragens... Felicidades a quem é ou a quem tem um e que pode comemorar assim como o casal de Hayez, num dos beijos mais bonitos da história da arte.

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sábado, 12 de fevereiro de 2011

Devaneio

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Ando Hiroshige (1797-1858). Vistas de Edo, chuva da manhã. Xilogravura, séc. XIX



A saudade exige sempre uma referência no passado. Por definição, só é possível sentir saudade do que já foi vivido, provado, experimentado. Mas eu às vezes (muitas vezes, na verdade) sinto saudades de coisas que não sei definir, que não sei precisar. Evidentemente se trata apenas de um desejo de ter vivido o que, por diversas razões, não se pôde nem se poderá viver. Sei que sinto muita saudade, por exemplo, dessa manhã de chuva em Tóquio (Edo).

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Esta imagem é um ukyo-e - literalmente: 'imagens do mundo flutuante' - de Hiroshige. Embora represente uma paisagem de Edo, a antiga Tóquio, não pertence à famosa série intitulada "100 vistas de Edo" (1856-58).

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Do começo ao fim

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Edvard Munch. O beijo II. 1902. xilogravura. Munch Museet




Deu-me o amor este dom:
O de dizer em poesia.
Poeta e amante é o que sou
E só quem ama é que sabe
Dizer além da verdade
e dar vida à fantasia.

E não dá vida o amor?
E não empresta beleza
Àquele que se quer bem?
Que não vos cause surpresa
O perceber neste amor
Fidelidade e nobreza.

E se eu soubesse que à morte
Meu muito amar conduzia,
maior nobreza de amante
Afirmar-vos inda assim
Que ele tal e qual seria
Como tem sido até agora:

Amor do começo ao fim.



(Hilda Hilst, 'XV', in Exercícios)

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domingo, 6 de fevereiro de 2011

Doce Nausícaa

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Frederic Leighton. Nausicaa. 1878.
Óleo sobre tela;. 67x145cm. Col priv.



Do longo périplo de Ulisses narrado por Homero vem mais esta história.


Certa vez, nas profundas horas da noite, Nausícaa, a princesa da ilha de Esqueria, habitada pelos Feaces, sonha que a deusa Atena lhe pede para ir ao rio lavar roupa (sim, há princesas, homéricas e não-homéricas, que lavam roupa!). Com um pressentimento feliz, assim que a "dedirrósea" Aurora surge na abóbada celeste, ela se levanta e pede ao pai, Alcínoo, um carro de mulas com que pudesse se deslocar até o rio. Estava em idade de se casar, mas não havia homem naquela ilha que lhe apetecesse. Evidentemente ela alentava a esperança de que ali aportasse alguém de fora, um estrangeiro de sangue novo que pudesse desposar.
E é movida pela expectativa de que algo iria acontecer que a doce Nausícaa vai fazer o que lhe sugerira a deusa. Circunda-se de criadas e segue para a orla do rio. Ali, enquanto as moças estão cumprindo a bem pouco nobre tarefa, eis que surge um homem, nu e com o "corpo empastado de sal". Assustadas, todas fogem, menos a princesa.
É Ulisses, náufrago, que lhe pede auxílio. Ulisses, cuja juventude há muito o tinha deixado, talvez lá mesmo onde deixara também a esposa, Penélope, e o filho...
Nausícaa, destemida, recebe o estrangeiro, cobre-o com as roupas (masculinas!) que estava a lavar e o leva até o pai.
Logo já se diz enamorada. Já anuncia a intenção de dividir com ele a sua vida.
O pai concorda, ficaria feliz em ter o estrangeiro como genro.
Mas Ulisses, aventureiro apenas quase sem querer, já estava exausto de tantas peripécias amorosas complicadas, de uma sucessão de ninfas e sereias, de perigos e tentações, e só queria voltar pra casa...
Recebido o auxílio de Alcínoo, Ulisses retoma então o seu caminho, deixando Nausícaa em profunda dor, engrossando a fila das abandonadas pelo herói e a das abandonadas da literatura antiga.




A pintura do inglês Frederic Leighton (1830-1896) consegue nos transmitir eloquentemente a dor de Nausícaa pelo abandono, pela perda de suas ilusões. Parada numa soleira, apoiada numa pilastra, sem forças, olhando para lugar nenhum, presta atenção somente ao insuportável estardalhaço dos cacos que se batem e caem dentro de si.

E a vida continua lá fora.
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sábado, 5 de fevereiro de 2011

E poi fiorisco un'altra volta

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Vincent van Gogh. Iris. 1889.
Óleo sobre tela; 55x65cm. Ottawa, National Gallery of Canada

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Appassiamo

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Vincent Van Gogh. Rosas num pote de vidro. 1886.
Óleo sobre tela. Amsterdã, Museu Van Gogh




Adoro a sonoridade da língua italiana. Em muitos momentos, meu cérebro (que reage evidentemente em português) tem a impressão de estar ouvindo um português enviesado, como se as palavras tivessem trocado de categoria entre si ou fossem alteradas por uma vozinha infantil aprendendo a conjugar verbos - a dificuldade dos pretéritos... Pensar em outra língua é um caminho bem mais longo... O bom é que permite uns desvios pra fantasia, apesar de possibilitar também uns enganos perigosos. Appassiamo, por exemplo, do verbo appassire, que intitula esta postagem, soa como um lindo convite imperativo à paixão - algo como 'apaixonemo-nos' - enquanto é só uma constatação, e das mais tristes (se a palavra for empregada no sentido conotativo), daquilo que bem poderia ser o oposto da paixão. E me soa como uma verdadeira pancada a conjugação da 1a pessoa do singular:


IO APPASSISCO
(eu murcho, feneço)

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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Areias

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O museu do Louvre guarda este relevo em pedra na seção de Antiguidades Sírias.

Psiquê, a menina alada, símbolo da alma, é vista sob o dorso de um camelo.  A pequena alma terna aqui não flutua. Poupa as asinhas e toma um meio de condução mais adequado. Atravessa a aridez do deserto em lombo de camelo. Quanto tempo levará? Quantos perigos terá de enfrentar sozinha, sob o sol? Blanda - terna -, mas valente.

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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Elegia

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Anoitece na estrada desolada. Minduri? Madre de Deus? Não me lembro...




Para o tom elegíaco, o Fernando Pessoa que mais me comove, Alberto Caeiro,
num poema dos que mais me comoveram em toda a minha vida, O guardador de rebanhos.




(...) Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Animula vagula blandula

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 Um detalhe de Amor e Psiquê observando uma borboleta,
do escultor italiano Antonio Canova.
Escultura em mármore (150x68cm), datada entre 1796 e 1800,
 no Museu do Louvre (há outra versão em Leningrado, Hermitage)


  

"Animula vagula blandula
Hospes comesque corporis
Qua nunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula
Nec, ut soles, dabis iocos..."


(Pequena alma terna flutuante,
companheira e hóspede do corpo
agora se prepara para descer a lugares
pálidos, árduos, nus
onde não terás mais os devaneios costumeiros)



(Poema do imperador Adriano
em seu leito de morte)





O tema do enamoramento de Eros e Psiquê (o amor e a alma) é outra das minhas afinidades eletivas, e o estudei em minha dissertação de mestrado.
A borboleta que o par enamorado segura e observa é o próprio símbolo da alma. A delicada e flutuante alma de Adriano é ainda, sem dúvida, a psiquê grega.
A palavra grega ‘psiquê’ – psykhē – liga-se ao verbo ‘psýkhein’, que quer dizer ‘soprar, emitir um sopro’. A palavra grega ainda hoje utilizada para o vocábulo ‘borboleta’ é psykhári, um diminutivo de psykhē. A palavra refere-se especificamente à falena noturna, que – como Psiquê –, é atraída pela luz. Aristóteles, em sua Historia animalium (551 A) já indicava que a palavra ‘psykhē’ também significava ‘borboleta’, e as representações de psiquês como aves ou borboletas já eram encontradas na Grécia Idade do Bronze.

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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Afinidades eletivas

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Ando revendo, escrevendo a respeito e, sobretudo, sentindo muitas saudades de delicadezas produzidas num certo ateliê romano na segunda década do século XVI. Raffaello. Saudades da 'graça', das transparências dos véus, das cambiantes que colorem as vestes, dos fundos plenos de citações antigas, dos espaços de profundiadades azuis e lilás de paisagens renascentistas.



Rafael e escola. Detalhe das cabeças da Madona e do Menino
da Madonna della Rosa. c.1518
Óleo sobre tela, 103 x 84cm. Madri, Prado




Rafael e Giulio Romano. Detalhe do busto da
Madonna della quercia. 1518-1520c.
óleo sobre madeira; 144 x 110 cm
Madri, Prado


Rafael e escola. Detalhe da cabeça de São José
da Madonna della Rosa. c.1518
Óleo sobre tela, 103 x 84cm. Madri, Prado
Aqui, nesta cabeça, me comove o realismo sincero mas
profundamente decoroso, que enobrece esta figura ( e não que eu
não ame o realismo brutal de um Caravaggio...)


Rafael e escola. Detalhe da paisagem com citações da arquitetura clássica
da Madonna della perla. c1518. 
óleo sobre madeira; 147,4 x 116cm. Madri, Prado


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