segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Rosa de Malherbe

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J.-A. D.  Ingres. Mlle Caroline Rivière. 1805-1806.
Óleo sobre tela; 100x70cm. Paris, Musée du Louvre


Por volta de 1805-1806, Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) pintava o retrato da Senhorita Caroline Rivière. Era o terceiro retrato de membros dessa família que o artista realizava - e certamente um dos mais belos de toda a sua carreira de excelente retratista. Artista de difícil enquadramento dentro de um rótulo estilístico, Ingres, contudo, afirma desde bem cedo as particularidades de seu fazer artístico: em composições dominadas por um classicismo lúcido e límpido da forma, ele introduz defomações anatômicas expressivas que podem até incomodar, mas não perturbam a harmonia, funcionando muitas vezes como importantes linhas diretrizes de eixos visuais, criando curvas e contra-curvas, ou rimas formais...

À época de seu retrato por Ingres, a senhorita Rivière, na flor da idade, contava apenas 14 ou 15 anos. Ingres escolhe aqui um modelo renascentista, italiano, do retrato em 3/4, e a impostação da figura isolada contra um fundo de paisagem traz muitas reminiscências de pinturas do primo Cinquecento. Evocação concomitante, talvez, de uma jovem Monalisa em paisagem fria e de uma "belle jardinière"








Os grandes olhos negros da moça - as deformações de Ingres? - nos fitam não sem melancolia ao mesmo tempo em que se demoram sobre o espectador com uma lentidão evocadora de um apelo sensual. Ingres cria uma atmosfera ambígua que aproxima a menina da mulher. Como efeito geral, o artista sugere uma tensão que parece residir em alguns contrastes. A figura em pé - eixo vertical - vive, pulsa, enquanto a paisagem, horizontal imóvel e serena - talvez a de uma amanhã invernal -, adormece, repousa (como repousam, mais que simplesmente pousam, os grandes olhos da moça sobre os nossos). Os lábios vermelhos, grossos e úmidos, adornam e aquecem um rosto de lua cheia que se oferece à nossa contemplação completamente isolado contra o azul do céu. O conjunto da cabeça se expõe como sobre o pedestal do pescoço de curva alongada.  O ar frio da obra é acentuado pelo vestido branco cuja alvura é ressaltada pela luz: uma reinvenção Império do chiton clássico. Às horizontais da paisagem, Ingres contrapõe muitas curvas, desde a da moldura na porção superior à do arco das sobrancelhas, as voltas do arminho nos braços, os ombros, o decote... Pela sensualidade de sua figura, a menina-moça se destaca, se separa, da paisagem gélida de sonho e nos promete uma vida mais concreta, mais real, mais intensa, bem além do aprendizado de um 'realismo' vaneyckiano que conhece texturas e detalhes: nos promete um desbrochar pleno logo adiante.

Mas disso não sabemos, pois a flor plena, como a rosa de Malherbe, ficou na promessa, morrendo Caroline no ano seguinte ao da pintura deste seu retrato, ainda menina


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"Rosa de Malherbe": a expressão tem origem num  poema do francês François Malherbe (1555-1628), escrito em homenagem à filha morta de um amigo, o sr. Du Périer:

"(...) Mais elle était du monde où les plus belles choses |
Ont le pire destin; | Et rose elle a vécu ce que vivent les roses, |
L'espace dun matin."

[Mas ela pertencia a um mundo em que as mais belas coisas |
 têm o pior destino; |
e, rosa, ela viveu o que vivem as rosas, |
O tempo de uma manhã.]


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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

sancai

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 Prato de oferendas. Norte da China. Século VIII d.C.
Cerâmica sancai. Paris, Musée Guimet



Os ceramistas chineses da dinastia Tang (618-902 d.C.) foram prolíficos. Viveram num período pacífico, no qual a tolerância religiosa permitiu a recepção e o abrigo de estrangeiros que vieram ampliar os horizontes daquela cultura. O comércio se estendia para a Índia e para o mundo árabe, acentuando essas trocas culturais. Restabelecido o comércio com o ocidente, a vidrificação, desaparecida na dinastia anterior, voltou a ser empregada na indústria cerâmica.
Foi quando esses artesãos parecem ter se deleitado com as experiências com a cor, buscando as mais variadas misturas de esmaltes. Com  essas pesquisas cromáticas, os chineses produziram um tipo de louça que foi denominado pela palavra "sancai", que significa literalmente "três cores". Curiosamente, a louça sancai não necessariamente se limita a apenas três cores. Pode ter uma, duas, três ou mais: mais comumente um amarelo vivo-mostarda que pode ser puxado para o ocre ou o marrom, o verde (do folha ao musgo) e o azul cobalto. A ideia das três cores contidas na palavra sancai parece ter vindo, isso sim, dos três óxidos empregados para produzir todos os matizes que aparecem nesse tipo de louça (ferro, cobre e cobalto). O colorido  vivaz, unido à temática inspirada na natureza, contribui para resultados magníficos, e as peças sancai foram amplamente imitadas no ocidente, inclusive na Europa, por um longo tempo.


Prato de oferendas. Norte da China, séc. VIII d.C.
Cerâmica sancai. Paris, Musée Guimet


domingo, 17 de outubro de 2010

xenia

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Natureza-morta com ovos e  tordos. Pintura mural proveniente da
villa di Giulia Felice em Pompeia. Século I .d.C.



A palavra grega xenia remete à origem das pinturas de naturezas-mortas, de acordo com Vitrúvio (Tratado de Arquitetura, Livro VI, cap.7) quando se refere aos presentes (xenoi) de hospitalidade oferecidos aos estrangeiros:


 Pois os gregos, quando eram mais exigentes e favorecidos pela fortuna, preparavam para os hóspedes que chegavam triclínios, cubículos e aposentos com provisões, convidando-os no primeiro dia para o jantar, e no seguinte enviavam-lhes frangos, ovos, legumes, frutos e outros produtos do campo. Por isso, os pintores chamaram xenia às pinturas em que imitavam aquelas coisas que eram oferecidas aos hóspedes. Desse modo, os pais de família, quando hospedados, não se sentiam em terra estranha ao encontrarem nesse aposentos uma discreta liberalidade.
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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Aparecida

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Isabela de Andrade. N. Senhora Aparecidinha.
 2009.



Seu nome é Aparecida, como o de milhões de outras brasileiras. Nome, aliás, de que não esconde certa vergonha, abreviando-o sempre por um ‘A’. Se quiser vê-la brava, basta chamá-la assim. Mas o fato é que considera a fé um luxo de que nunca dispôs. Confessa, entre seus muitos e ordinários pecados, o da inveja de quem a possui. Porque a fé é o maior dos lenitivos, uma bênção que não cabe a todos.

E houve uma época, quando a Cida inaugurava a casa dos 30, em que a vida estava sendo de amargar. Foi um tempo em que tudo o que fez, costuma dizer, foi comer o pão que o diabo amassou com rabo. No final de um ano triste, depressiva e doente, acompanhou a mãe e a cunhada à cidade de Aparecida, “pra espairecer”.

Entrou na basílica fria, tão imensa que mesmo apinhada parece continuar vazia, e feiosa, e triste, nua. Pegou a fila dos crentes que iam ver a imagem da santa e, cara a cara, fazer seus pedidos. Longa fila... Viu lá de baixo a pequena imagem escura de que mal se divisava o manto azul. E naquele instante, desejando imensamente ter fé, arriscou um pedido.

Esta semana, em vista do feriado nacional em que se celebra a santa da imagem ‘aparecida’ no rio Paraíba, conversávamos eu e Cida, sobre ela: a imagem e a santa. Ela dizia que já são passados dez anos de suas desventuras sem que qualquer milagre se tenha operado em sua vida, que foi o tempo que amenizou consideravelmente sua dor e mudou seus caminhos, assim quase sem se notar. Mas contou que, quando os sinos tocaram meio-dia e os devotos soltaram fogos em comemoração, agradeceu à santa, sem qualquer mágoa, por não lhe ter concedido o milagre que um dia havia implorado. Reconhecia certa sabedoria naquele não-milagre, naquele abandono silencioso, quase desdenhoso, da santa, obrigando sua vida a seguir pela mesma trilha, sem consolo, até que o pão que o diabo insistia em amassar com o rabo se tornasse mais palatável. Caminhos naturais que inevitavelmente levaram à superação, ao fortalecimento e ao crescimento. E aí a Cida contou também que secretamente fez outro pedido à santa: que mantivesse apenas sua fé na viabilidade dos caminhos naturais da vida, que nunca viesse a desejar novamente um milagre.

Eu não lhe disse, mas fiquei aqui pensando se o milagre não estaria aí, dez anos depois; se o que neste 12 de outubro ‘apareceu’, ‘se revelou’ para ela não seria muito maior e mais reconfortante do que um milagre explícito: a serenidade de aceitar e entender que para o sem fé não existe milagre e que, paradoxalmente, há muita fé em viver simplesmente deixando que seja feita uma outra vontade.

(Será?)




‘Aparecida’ é particípio passado do verbo ‘aparecer’, que vem do latim ad + parere, ou seja: ‘vir à luz’, ‘mostrar-se’, ‘apresentar-se’. A imagem de Nossa Senhora da Conceição ‘Aparecida’ foi apanhada nas águas do Rio Paraíba do Sul em 12 de outubro de 1717, ‘apareceu’ na rede de um pescador. Feita em cerâmica, apresenta a cor escura pela imersão nas águas e pela exposição de quase três séculos às chamas de velas.


domingo, 10 de outubro de 2010

Rosa-menina

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Um pé de rosa-menina em foto original de Roque Medeiros.




Quem lida com arte - o fazer, a história ou a crítica de arte -, quem pensa sobre arte certamente já se viu em algum momento naquela enorme dificuldade em que se resume a tentativa de definição do que seja isso. Tarefa vã. Não me atreveria a empreendê-la e não irei. Aqui expresso apenas minha certeza de que existe arte e arte... e a convicção de que a 'obra-prima' é aquela em que forma e conteúdo se confirmam e criam uma unidade indissociável.

Na minha lista de obras-primas está esta música de Caetano Veloso, Cajuína.









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érêmus

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A ermida de Santa Cecilia em Santibanaz de Val, Burgos, Espanha. séc. X-XII



"Ermida" é, sim, uma pequena igreja, mas por derivação de sentido.
 Inicialmente, a palavra se referia a uma pequena igreja em lugar deserto, retirado, ermo. O vocábulo deriva do latim éremus, através do grego érêmus, sempre com o significado de 'solitário', 'deserto'. O 'eremita', ou 'ermitão', é o que vive em isolamento nesse lugar, o eremitério. A 'igreja' (edificação) deve ter entrado nessa história pelo fato de a prática eremita estar vinculada a atos religiosos desde o final da idade antiga. A  meu ver, a palavra 'ermida' é indissociável do aspecto de isolamento, e eu só costumo empregá-la em referência a uma construção religiosa quando esta, de fato, estiver localizada em área deserta, no 'meio do nada', como a igrejinha espanhola mostrada acima.
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sábado, 2 de outubro de 2010

Desiderabilia II

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Uma esquina romana num dia de maio de 1990,
a primeira vez em que estive lá.




(sentar tranquilamente numa esquina de Roma...)


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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Desiderabilia I

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Gu Zou. Apreciação da arte do chá. 1811.
 nanquim e tinta s/ papael, 27,3x40,6cm. col priv.




(simples assim...
e sem cor)

ou, com cor, numa imagem deliciosa:



Jean-Siméon Chardin. Mulher tomando chá. c.1736.
óleo sobre tela; 61,5 x 66,5cm.  Londres, National Gallery
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