sexta-feira, 25 de junho de 2010

Alvíssaras

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A palavra é deliciosa: alvíssaras.

Aprendi com José de Alencar quando tinha uns dez ou doze anos e li O tronco do ipê. Um dos capítulos do livro se intitulava justamente "Alvíssaras".

Tomei aquela palavra desconhecida à boca, maravilhada com sua eufonia, e a saboreei, como quem prova uma iguaria rara. Deixei que derretesse na língua e que seu perfume subisse até o palato para depois, só depois, pronunciá-la.

Delícia de palavra...

Imaginei, de imediato, que era um nome de flor. 'Alvíssaras'. Flor branca, claro, pela alvura anunciada desde o princípio. E o plural parece indicar uma penca, muitos cachos, de flores miúdas, daquele tipo que funciona bem em conjunto. E criei na minha cabeça primeiro uma floreira de janela, com os pompons de alvíssaras que me dariam muitos bons-dias por muitas manhãs; depois quis um canteiro de alvíssaras que iriam tagarelar à vontade com as boas e sinceras margaridas, com as rosas e suas evocações de Marias e Vênus, com as anêmonas de Adônis, com narcisos perdendo o viço, com minhas estrelizes e amarilis vaidosas. Melhor que isso: concebi depois um campo inteiro de alvíssaras, como um mar que desce do outro lado do horizonte que a gente só adivinha. Mar branco de flores delicadas.

Passado o primeiro impacto, deixei de sonhar e fui ao Aurélio meio capenga, com a capa se soltando, que tínhamos em casa. E ele me disse que as alvíssaras não compartilhavam absolutamente nada com a botânica: eram simplesmente as boas-novas, as boas notícias. Não simplesmente notícias, novidades, mas boas. É ainda a recompensa pedida e oferecida a quem traz as boas-novas e a exclamação de alegria de quem as pronuncia.

E eis que eu fico ainda mais apaixonada por essa palavra. Pensei em alvíssaras que alguém me traria (sim, como um buquê de flores - miúdas e brancas, obviamente). E pensei em alvíssaras que eu levaria a alguém, e no que seria a sementeira de alvíssaras... Pensei na brancura do papel de uma carta alvissareira, e descobri ser ainda mais saboroso o adjetivo, pondo-me às voltas com imagens de dias alvissareiros, que principiariam numa fulgurante alvorada. E não é que as alvíssaras podem mesmo trazer um novo dia, uma alvorada plena de promessas exatamente como uma folha em branco?

A etimologia, no entanto, veio negar tudo tudo tudo quanto eu criei na minha imaginação, todas as minhas viagens: a palavra vem do árabe 'al-bixrà', 'al-buxrà', que significa "a boa nova". Portanto: nem flor, nem alvor. Mas não me importa. Continua a ser uma palavra linda e de linda semântica. Mas, definitivamente, se eu tivesse o poder do demiurgo, criaria uma nova flor, branca e delicada - renda de abrolhos -, pra reunir em pencas e espalhar pelos campos, só para gastar a palavra.



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sábado, 19 de junho de 2010

Indugio

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...il giorno,

come un ricordo intorpidito  

i  n  d  u  g   i    a
[a volte]

 tra le pieghe del cuore




(Demora

...o dia, como uma lembrança enfraquecida,
se demora às vezes
entre as dobras do coração)


/ Bruna dell'Agnese. "Fine dell'inverno",
in Vuoto in giardino / Tradução

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fotos: Amarilis/

sábado, 12 de junho de 2010

Futuro do pretérito

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Aos que sonham e merecem viver
o amor no presente e no futuro

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Piet Mondrian. Riviergezicht met boot. 1910. ost, 66x102cm. Amsterdã, Rijksmuseum



(...)
Queria ficar ancorada no seu regaço, sem pensar em ter que partir um dia,
acolhida como numa baía de águas mansas.
Iríamos conversar bastante, enquanto a noite não chegasse,
e admiraríamos e comentaríamos todos os muitos azuis do céu, que são infinitos, a cada mudança da luz, a cada nuvenzinha que se apresentasse.
- Porque somos ambos apaixonados pelos azuis.
(e pelos verdes
(e por aquelas cores todas, barulhentas que são, dos fins de tarde) -
Então eu te mostraria o tesouro que guardo comigo,
que arrastei pelos sete mares e defendi bravamente. Ainda inexplorado.
E ficaria surpresa ao perceber nesse momento o quanto ele havia se multiplicado.
Eu me diria "como pode, se já perdi tanto por aí? Foram tantas tempestades, tantos assaltos, tantos acidentes... Como?"
E talvez você me mostrasse o seu...
Sim, mostraria.
Eu ficaria feliz, faria um balanço pra lá, outro pra cá nas suas águas, como um agrado.
Então eu entenderia de imediato aquela mágica multiplicação.
E te diria: "lembra quando você me disse que se sentia um lixo? Que bobo! Como pôde pensar assim? Tanta coisa linda você guarda aí dentro. Quero ver tudo! Quero provar tudo! O que não for muito perfeito eu também quero conhecer, que eu também tenho um montão disso".
E ficaríamos alegres, mas alegres mesmo, trocando nossos tesouros e lançando nas ondas nossos cacarecos que só ocupavam espaço.
E então, muito leves, iríamos assistir ao pôr do sol, embalados deliciosamente pela brisa. Embalados.
Ouviríamos as gaivotas em rebuliço, procurando a acolhida pra noite
(porque à noite mesmo as feras voltam pra casa).
E se em algum momento eu tivesse querido partir de repente, você teria dito, com um pesar sincero "não vá, ainda não te mostrei como as estrelas são incomparavelmente mais bonitas vistas daqui. Acredite".
E eu não iria.
Não iria.
E seria uma noite muito estrelada aquela, muito estrelada...
Contaríamos dezenas de estrelas cadentes e veríamos seu riscado impresso nas suas águas - plácido lago de chumbo, profundo e denso; manso e suave.
Saberíamos finalmente interpretar seus desenhos e não faríamos tolos pedidos a elas.
Porque não precisaríamos de muito mais.
Apenas de mais um tempo.
Um tempo pra ser.
Um tempo pra estar.
Juntos.

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sexta-feira, 11 de junho de 2010

Stanca morta

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Jan Vermeer. Mulher adormecida à mesa. NY, Metropolitan Museum



Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...



Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.  
(...)


Álvaro de Campos, in Poesias

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domingo, 6 de junho de 2010

Deserto

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Claude Lorrain. Psiquê abandonada. Londres, National Gallery



'Deserto' vem do latim 'desertus' e é o particípio passado de 'deserere', que significa abandonar, deixar em abandono. A partícula 'de' nega o sentido de 'serere', que quer dizer conectar, ligar.

O deserto é esvaziado de tudo.
Nele, não há ponto de conexão possível.

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sábado, 5 de junho de 2010

Joanino-junina

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 Alberto da Veiga Guignard. São João.



O pequeno João Batista morava em Minas.
Morava na roça, nas bandeirolas coloridas
erguidas em mastros adornados de fitas
e flores de pano estampado de flor.
Era a criança festeira, brincalhona e barulhenta.
Tinha traços doces, cabelos negros, olhos vivos.
Fazia balão-galinha
pra soltar na noite fria com seus amigos.
E seus amigos, só os seus, eram uma centena...
E fazia balão multicor
pra vestir as estrelas de coral, amarelo e azul.
E atiçava as brasas da fogueira,
que soprava só pra ver se espalharem
que nem outras estrelas.
(miríades de estrelas ele via nascer todos os anos em junho)
E inflamava a ponta de uma vareta qualquer
pra desenhar uns carneirinhos no quadro-negro do ar
até se cansar.
E se encantava com uma prenda mixuruca - 
conquista suada na barraquinha das argolas -
(encantava-se com pouco, essa criança).
Adorava o barulho seco dos cinco ou seis saiotes das moças quadrilhando.
E saía todo feliz dançando atrás delas,
e morrendo de rir da cobra e da chuva.
Nem sonhava o fim dos tempos,
como outro João sonhou.


Já tinham me dito que ele ainda morava em Minas.

 

Sei que outro o dia o vi, por acaso,
em alto e abandonado mastro,
numa encruzilhada poeirenta de agosto,
chão de terra vermelha,
esquecido sobre o estandarte fustigado pelo vento
daquele meio-dia árido,
lento.
Estava ali, desbotado, tristonho,
o rosto sujo trespassado pelo tempo
em incontáveis furos. E rasgos.
Desfigurado.
Mudo.
Só.

Foi Salomé?
Foi o deserto interminável?
Foi o interminável deserto, João?


Mas eu parti sem resposta,
tentando apanhar no remoinho de vento e pó,
entre miolos de uns fuxicos descorados
e notas puídas de um acordeão,
os restos do meu coração retalhado
de saudade.



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