sábado, 22 de maio de 2010

Em claro







Acordou sobressaltada com seu próprio grito. Três e cinquenta e três. Madrugada fria. Virou para um lado, para o outro... Revirou o coração e a vida, sem achar o que buscava. Passou horas ali catando as mágoas que transbordavam pelas dobras da colcha, se escondiam, quase brincando, pela trama vazada da coberta cor de pele. Queria acalmá-las um pouco, queria que parassem de fazer tanto barulho. Estava cansada e precisava dormir. Mas não paravam. Até na bolha de tinta da parede mal pintada encontrou uma delas, pequenina e encolhida. Cantou pra elas dormirem. Já ia deitando novamente a cabeça no travesseiro quando ouviu o suspiro grave e medonho da dor que morava embaixo da cama.  Ficou com medo, como quando era criança, que aquele monstro viesse pegar seus pés. Repassou a lista dos como e dos porquês, espantou as culpas, enxugou quarenta e sete lágrimas, invocou uns deuses e acabou acordando sem querer todas as mágoas que já tinham pegado no sono. Acendeu mais luzes, por fim, tentando ver e entender. Mas só a noite é que já estava passada em claro.








terça-feira, 18 de maio de 2010

humi iacentem


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Jaques-Louis David. Psiquê abandonada. c1787.
Óleo sobre tela (inacabada); 80 x 63cm. Col. priv.



Sobre o amor e a terra, ainda...

O Amor e Alma são amantes desde a filosofia grega platônica, mas só tomaram forma literária com o latino Lucius Apuleius no século II. As Metamorfoses narram as aventuras e desventuras da ingênua Psiquê em seu caminho ascensional em direção ao Olimpo, o divino. Ao paraíso não se ascende sem pagar caro, obviamente, com muito sofrimento. E a narrativa Apuleiana é cheia das tintas passionais exacerbadas, dos desesperos e desatinos que os encontros e desencontros com o amor é capaz de provocar.  E ei-la, Psiquê, abandonada por Amor, num dos pontos de virada da história. Ela conheceu o paraíso e acaba de perdê-lo. O amante bate as asas, e ela, exausta, escorrega para o chão, ficando ali, "jacente em terra, prostrada no chão" - "humi iacente, humi prostrata" - "atormentando a alma com lamentos."






Esta pintura inacabada do pintor neoclássico Jacques-Louis David (1748-1825) representa o momento doloroso vivido pela ingênua e estabanada personagem. Quando o Amor bate as asas, ela se vê de repente no chão, despojada de tudo, sem nada além de suas próprias roupas a seus pés. A escolha de David para o isolamento da figura agigantada em primeiro plano contra um fundo de paisagem de horizonte baixo amplia em nós a ideia da solidão e do desalento da moça. Ela torce as mãos como torcem os que perderam a razão, a alegria e a esperança ao mesmo tempo. Deixada  a si mesma. Humi iacente.


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De humus (terra), aliás, vem 'humilhação', vem' humildade', porque a terra, o chão, é agora não mais o receptor de sementes que frutificam e alimentam, mas apenas o ponto baixo, o mais baixo que o ser humano, vertical e altivo, pode atingir.

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ele mesmo, o Amor

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Vincent van Gogh. O semeador. nov. de 1888.
Óleo sobre tela; 32x40cm. Amsterdã, Museu van Gogh



Este transcrevo de um autor por quem sou apaixonada,
Affonso Romano de Sant'Anna:


       "Quem sabe o significado das palavras vive mais densa e duplamente. Vive quando vive e vive quando palavreia.
       E se amar é bom, saber o sentido da palavra amor é amar mais finamente. Por isso dou um doce a quem me disser de onde vem a palavra amor.
      Já sei, você vai pensar: vem do latim amorem, significando afeição, simpatia e carinho. Ou, então, vai dizer: não me interessa. O que conta é amar. (...)
       Aprendo com Bent Paroli que a raiz da palavra amor é egípcia e não latina. Também nada tem a ver com o "ama" grego, embora este signifique "juntos". Os gregos também falam de "eros", mas a raiz dessa palavra indica "atividade".
       O vocabulário egípcio traz a raiz MR, MRJ. Parece estranho. Os egípcios não usavam vogal. Mas eles escreviam assim e na hora de pronunciar, a vogal aparecia. E o fato é que MR se pronunciava "amer", "amor". Escrita com hieróglifos a palavra MR era representada por uma espécie de pá ou cavadeira de camponês abrindo a terra. Há um sentido agrário de fecundação cósmica. Amor, então, era como um ato de cultivar a terra."

(Affonso Romano de Sant'Anna. "Entre outras palavras, o amor", in Que presente te dar)


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Irmãos Limbourg. Les Très Riches Heurs du duc de Berry. Outubro.
1412-1416. Iuminação s/ pergaminho; 22,5x13cm. Chantilly, Musée Condé

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E vejam só quem já sabia disso:


Lindo demais
Coração é terra que ninguém vê 

Quis ser um dia jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina

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terça-feira, 11 de maio de 2010

Campanilismo

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AULA DE VER

Meus olhos miúdos de menina
miraram o anjo soberbo de beleza
Sobre a lanterna da catedral.
Queriam passar a tesoura no anil do fundo
e resgatar a figura afogada
na aura de bronze
expandida ao sol
do crepúsculo estival.


Mas ficou fora de foco.
Porque das aulas de fotografia
eu tinha aprendido duas coisas:
a apanhar no vôo e sem permissão
a paixão que Ana lançava
em retalhos e fiapos ao engenheiro
(atento apenas às maravilhas
daquelas lições de arte
e de ignorância do amor);


e aprendi do ocaso
que este é feito de duas cores díspares
 - amarelo e azul -
derramadas na hora única
em que a noite se anuncia
e abraça as ruas e casas
para onde voltam os homens,
sem saber ter inventado
a lâmpadas e velas
as molduras do aconchego
das janelas que eu sonho:


quadrados, retângulos, recortes
ovóides
acesos,
ferindo de morte o azul
diariamente
A pior hora a ser fotografada;
briga ferina de luzes
a desgostar o professor
num desperdício de poesia.

 
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Poeminha escrito pela Amarilis há muito tempo, recordando a época em  que ela estudava artes plásticas na Unicamp e morava em Campinas-SP, terra que adotou e da qual sente imensa saudade. Quando Amarilis foi estudar história da arte, conheceu um autor de suma importância para a disciplina chamado Giorgio Vasari, que era muito mas nuuuuito 'campanilista'. Esta última palavra é italiana, mas Amarilis gostou dela (que tem imagem e até imagem de som...) e a incorporou desde sempre ao seu próprio vocabulário. Vem de 'campanile' (que vem de 'campana': sino), o campanário (ou, em barroco-mineirês, 'torre-sineira') das igrejas italianas. Sendo as igrejas frequentemente as mais louváveis e belas arquiteturas presentes nas cidades medievais, o campanário evidentemente assumiu desde então uma imagem de referência à própria cidade na qual estava erigido. Daí o campanilismo ser, em bom português, o  nosso 'bairrismo': um certo ufanismo em relação à terra natal, algo por aí...
   
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Fotografia original de Alex Costa em http://www.flickr.com/photos/alexcosta/4509152957/, cortada, mexida e revirada por Amarilis, retratando a linda (sim) catedral metropolitana de Campinas, dedicada à Nossa Senhora da Conceição. Observe-se que o anjo da fotografia não está sobre a lanterna, o que foi apenas uma licença, e nem tão poética assim... 
 
 
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segunda-feira, 10 de maio de 2010

To-morrow

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To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
Creeps.in.this.petty.pace.from.day.to.day,
To the last  s y l l a b l e  of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's butw a l k i n g   shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an i d i o t, full of sound and fury,
Signifying  

n  o    t     h    i      n       g




W. Shakespeare, Macbeth Act 5, scene 5, 19–28
[quem quiser, que traduza... Amarilis não quer. Ao menos hoje não. Quem sabe um dia... To-morrrow]

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sábado, 8 de maio de 2010

Ó

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Às mães


       No Brasil são centenas as invocações marianas. Desde o período colonial, acorriam à Maria os homens, portugueses desterrados, desgarrados de suas famílias em andanças de desbravamento por este solo. Distantes de suas mães e esposas, oravam à Virgem por proteção, quem sabe buscando ainda a doçura maternal que haviam perdido de vista. Carregavam sua imagem em pequenos - por vezes pequeníssimos - oratórios portáteis e, uma vez assentados satisfatoriamente, tratavam logo de edificar à Senhora uma capelinha humilde, provisória, onde depositar sua imagem protetora: origem de muitas igrejas-matrizes de cidades do interior brasileiro.
       Entre as mulheres, uma das invocações de Maria mais populares, desde o início da colonização, é de Nossa Senhora da Expectação, também chamada Nossa Senhora do Ó. A razão de tal devoção feminina a essa figura é evidente: a necessidade de proteção divina na hora do parto em épocas em que esse processo natural constituía um claro risco de vida. Entravam em cena então as imagens da Virgem barrigudinha, mão sobre o ventre cheio, comuns desde o século XII na Espanha e em Portugal, mas cuja origem remonta ao século VII.



Nossa Senhora do Ó, ou da Expectação. Pedra calcária policromada.
De Portugal, séc. XIV. Lisboa, Museu das Janelas Verdes



       Num dos concílios eclesiásticos ocorridos em Toledo, na Espanha, no século VII, ficou determinada a fixação da data de 18 de dezembro para a celebração da festa da "Expectação do Parto da Beatíssima Virgem Maria". Sendo o natalício de Jesus celebrado em 25 de dezembro, a festa da expectação ocorria uma semana antes disso. Por ocasião dos festejos, recitavam-se as Antífonas maiores, que, em número de sete, iniciavam-se com a exclamação 'oh'.
       Aí, portanto, parece estar a origem dessa invocação mariana. No Brasil, o termo "da Expectação" devia parecer, junto ao povo, de difícil pronúncia, ou talvez longo demais. O fato é que o epíteto "do  Ó" foi o mais comum, e à Nossa Senhora do Ó aqui se dedicaram várias capelas e igrejas. Uma delas deu origem ao bairro paulistano da Freguesia do Ó. Outra, a de Sabará, é uma das relíquias da arte colonial mineira.
       Logo, contudo, rareram as imagens da Virgem grávida, condenada pela óbvia contradição do dogma da Conceição, segundo o qual é matéria de fé que a jovem Maria concebeu e deu à luz Jesus sem pecado, por obra do Espírito Santo, mantendo intacta sua virgindade. A Conceição  (conceptione - concepção) é, deste modo, aquela que concebeu sem pecado.
       Mais tarde, na segunda metade do século XIX, a Igreja decidiu que não apenas o Cristo, mas também a própria Maria fora concebida (por sua mãe, Ana) sem pecado, e esta é a Imaculada. Portanto, apenas no século XIX é que Maria passa a ser, além de "Conceição", "Imaculada".
       Todas essas determinações eclesiásticas evidentemente criaram confusões no instante da representação formal dessas imagens, e a Virgem barrigudinha sobreviveu apenas, e breve e infelizmente, no imaginário popular. Sobre o pitoresco e eufônico "Ó" que lhe dá nome, a origem não é menos controvertida. Certamente se liga à recitação das Antífonas maiores das vésperas natalinas, mas pode ainda ser um eco de um dos sermões do  Padre Antônio Vieira, intitulado justamente Sermão de Nossa Senhora do Ó, proferido na igreja da Ajuda em Salvador, em 1640. Neste sermão, o pitoresco se mostra pela aproximação da forma circular do ventre mariano à forma geométrica do círculo, símbolo da perfeição desde a antiguidade, a forma do globo terrestre, das esferas celestes, do Universo e, se Deus tivesse forma, diz Vieira, essa seria também a sua.




 
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Rosas desde o fim

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D. Gerharts. The moment (detalhe). Óleo sobre tela, 121x76cm. col priv.
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E cedes o lugar
ao mais distante:

ao invisível quase

àquele
cujo frêmito se insula
intangível mesmo ao ar

àquele a que o mundo não contém
no pó do movimento
e do tempo

e para cujo triunfo
de antemão
se concebeu a própria

desconstrução de tua alvura


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Guenádi Aigui, Rosas desde o fim (1966).
Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman


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sexta-feira, 7 de maio de 2010

As rosas de Adônis


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.Antonio Canova. O adeus de Vênus e Adônis.1794. Mármore.


A rosa é uma flor de muitas evocações simbólicas. Antes de se tornar, por obra do cristianismo, um símbolo da pureza e da virgindade de Maria, ela se vincula, desde a antiguidade clássica, ao amor mítico de Vênus e Adônis. Ela, uma deusa do panteão canônico; ele, um jovem caçador de extraordinária beleza cuja história, bastante remota, seria oriunda do Líbano ou da Síria. De todo modo, é no período helenístico que Adônis vem a tornar-se mais um par amoroso da deusa, certamente por influência da cultura oriental. Numa das versões mais conhecidas da história, eles teriam se apaixonado e sido felizes por um breve espaço de  tempo. Caçador que era, um dia Adônis foi mortalmente ferido na coxa por um javali. Vênus, que conhecia esse destino do amante, havia sempre tentado dissuadi-lo das caçadas, sem sucesso, para atrasar o vaticínio. Era assim que, antes de cada partida para a caça, ela se despedia desolada de seu par, não sabendo se tornaria a revê-lo. Um dia, Adônis de fato não voltou mais. Contam alguns que, do sangue que correu de sua ferida aberta, teriam nascido as rosas vermelhas - ou, há quem diga, as anêmonas. Outros autores narram, em vez disso, que as rosas nasceram das lágrimas da tristeza de Vênus. Assim, as rosas se tornaram símbolo do amor que sobrevive à morte; símbolo de renascimento.        



Antonio Canova. Vênus cororando Adônis. séc XIX.
 Gesso; 145x104x185 cm. Possagno, Gipsoteca Canoviana




As imagem superior é um detalhe da obra em mármore do escultor neoclássico Antonio Canova (1757-1822), considerado o último dos grandes artistas italianos. Quando olho para este detalhe aqui mostrado, do casal que troca olhares e gestos de imensa ternura na despedida, custo a crer na crítica de arte do século XX (sobretudo a partir de Roberto Longhi) que longamente desdenhou esse escultor, tachando-o de "frio" e "cemiterial". Suas obras de mármore polido e forma idealizada, falam, sim, calorosas palavras de pele, de cabelos, de tecidos e, certamente, de amor.



              
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terça-feira, 4 de maio de 2010

Rosai por nós

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George Cochran Lambdin. Rosas amarelas, brancas e cor-de-rosa.
 1876. Óleo sobre madeira; 50,8x34,9cm. Coleção privada



Rosai por nós
nossa senhora da flor roxa
rosai por nós
assim na vida
como no chão
a primavera de cada ano
nos dai hoje
encantai nosso jardim
assim como encantamos
o do vizinho
e não nos deixeis cair na tentação
de esquecer tuas flores.


 Rosai por nós. Poema de Alice Ruiz musicado por Chico César

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Ora pro nobis

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À minha mãe,
à minha filha,
à minha amiga-anjo
aos que sofrem



       Eu tive uma amiga-anjo, figura sensível e doce, e quase contraditória em sua notável erudição de historiadora aliada a uma inabalável fé católica, da qual eu feliz ou infelizmente nunca partilhei. Partilhávamos, isso sim, grande amizade e entendimento. Mas decididamente: num dos piores momentos da minha vida ela esteve presente me encorajando, me ouvindo com paciência, ao lado de minha mãe (que vivia longe) e de minha filha, que, ainda muito pequena, corria alegre e descalça pelo apartamento vazio e me levava copos d'água e laranjas na cama quando a depressão não me deixava levantar. Naqueles dias vazios, plenos apenas de dor e desesperança, ela me disse certa vez algo de que eu nunca me esqueci, algo a que torno e retorno sempre que a vida me desatina e derruba: "peça (conforto) à Maria", me disse. "Ela é mãe".
       Ela é mãe.
       E quem é mãe sabe o que isso significa. Eu tenho a sorte imensa de ter e de ser mãe, que as lições de vida e de amor parecem estar todas, todas, contidas aí.
       Sim. Isso me acalmava de verdade. Pensar em Deus não me era tão agradável quando pensar numa mãe acolhedora, calorosa, amorosa. Foi então que aprendi a cantar as palavras de saudação  de outro anjo - Gabriel - à futura mãe do filho de Deus: Ave Maria. Oração cantada. Linda. Não há quem não conheça ao menos uma das muitas versões que a história da música nos oferece.  Não rezo rosários, mas certamente já rezei vários deles em muitas  longas viagens solitárias, cantando pra mim mesma. E sempre volto a essas palavras nas horas de aflição e dor:



Ave Maria, gratia plena
Dominus tecum
Benedicta tu in mulieribus
Et benedictus fructus ventris tui Jesus
Sancta Maria, Mater Dei,
Ora pro nobis pecatoribus
Nunc et in hora mortis nostrae
Amen.


Stephan Lochner. Anunciação. Retábulo dos santos patronos de Köln.
1440-1445. Têmpera sobre madeira. Hohe Domkirche St. Petrus und Maria, Köln



Bach, Gounod, Schubert compuseram as mais conhecidas versões, mas a minha versão predileta é a de atribuição controversa ao florentino quinhentista Giulio Caccini (1545-1618) ou ao russo Vladimir Vavilov (1925-1973). Já ouvi diversas gravações dessa música, interpretadas por vozes de maior ou menor delicadeza, e que, de toda forma, sempre exerceram sobre mim um efeito catártico. Impossível não chorar. Impossível não acreditar que o conforto virá, insubstituível, como um abraço de mãe.



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segunda-feira, 3 de maio de 2010

L'umano sbagliare


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Sbagliai così


Storditamente andavo raccogliendo
da paradisi alati piume variopinte
per farmene un uccello. Ma quando
al davanzale, al mio trastullo esotico
dissi: vola! già nel cortile cadde
senza un grido.
Umilmente ora, io mi inginocchio
ai passeri, i sopravissuti dell'inverno.
E nel prodigio di quelle ali vive
mi inizio
ai segreti del volo.

Bruna dell'Agnese. "Sbagliai così", in Correndo l'anno.



Henri Matisse. Icarus. 1947. Color pochoir; 41,9x26cm. NY, MoMA



Foi assim que errei

Eu vinha atordoadamente recolhendo
das aves-do-paraíso as coloridas plumas
para com elas formar um pássaro. Mas quando
no parapeito ao meu passatempo bizarro
eu disse: voa! Já no pátio ele tombou
sem nem um grito.
Agora humildemente me ajoelho
aos pardais, os sobreviventes do inverno,
e no prodígio daquelas asas vivas
inicio-me nos mistérios do voo.

 (minha tradução)

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'Errar': a etimologia vincula o errar à escuridão e ao escorrer. Errare (latim) deu as antigas formas  'errare' (italiano) e 'errar' (francês, catalão, português e espanhol), vinculando-se ainda a èrrein (gr.); irrôn / irren (alemão antigo); irrjan (sânscrito); airz-jan (gótico). Todas podem ter sido originadas do grego 'ere-m-nòs' através de 'ereph-nòs', que significa 'escuro', ou do sãnscrito 'ars-sati', escorrer (será?).
Quem erra -  humana sina - vaga no escuro, sem direção ou controle, como que arrastado, subjugado por uma força maior.

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sábado, 1 de maio de 2010

Floralia

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Irmãos Limbourg. “Maio”, in Les très riches heures du duc de Berry.
1412-1416. Iluminura sobre pergaminho; 22,5 x 13,6cm. Chantilly, Musée Condé.



       "C'est mai, c'est le joli mois de mai!",  diz uma antiga canção francesa. Chegou o belo mês de maio.
       May day, o primeiro dia de maio, é dia de festa, de celebração, desde a antiguidade. Na Roma antiga, entre 28 de abril e 3 de maio se realizavam as festas da primavera - a Floralia -, quando a gente comum podia se divertir com música, dança, canto, teatro e jogos.
       Na Idade Média, alguns costumes derivados do festival da Floralia faziam com que, no primeiro dia de maio, os rapazes saíssem para o campo em busca de pequenos ramos e que as pessoas vestissem roupas verdes. Quem não o fazia podia virar alvo de chacota. E aí está a origem da expressão francesa "je vous prends sans vert" (ou seja, literalmente: te peguei sem verde, ou, aproximadamente: te peguei bobeando). Em alguns locais era comum que os nobres distribuíssem as caras roupas verdes a seus súditos.
       Na deliciosa imagem dos irmãos Limbourg, trabalhando na França para o duque de Berry, Maio vem ilustrado pelas reminiscências da floralia. No arco que envolve a cena, o estado do céu revela os signos zodiacais de touro e gêmeos. Embaixo, ao som de música e acompanhando um alegre cortejo, três damas a cavalo vestem o verde da festa. Gente nobre, conforme indica a suntuosidade das roupas. O próprio duque de Berry parece ter sido ali representado, com o manto azul cravejado de flores bordadas a ouro; ele, que quando rapaz corria ao campo em busca dos ramos do may day.  No segundo plano, uma densa cortina de árvores indica a floresta, mas nos deixa entrever acima, fechando o horizonte, as torres e tetos dos palácios urbanos. Estamos na aurora da Idade Moderna.




Flora (A primavera). Pintura mural romana, proveniente de Stabiae.
Século I a.C. Nápoles, Museo Nazionale



       Maio, meu mês de predileção. Sempre fui atenta a maio. Nasci em maio.
       No hemisfério norte, a primavera avança com seus dedos verdes, plenos de flor, sob um céu de azul intenso e sob aquela boa luz que fazia as noivas tirarem dos baús seus enxovais. Luz capaz de branquear, de renovar, essa luz de maio. Mesmo aqui, no hemisfério sul, a luz de maio é ímpar. Luz oblíqua, que alonga as sombras, que tinge de dourado mais longamente os fins de tarde, então embalados por um vento suave e frio. Em maio, todos os sons, até os mais distantes - como o dos sinos das igrejas mineiras, que tanto conversam - ressoam mais nítidos. Maio desvela muito mais que um cortejo de noivas e de mães: promessa e realização de fecundidade, renascimento e renovação. Maio ergue véus.
       Em maio, devia ser proibido chorar.




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Maio: o substantivo 'maio' tem (como sempre) origem controversa. Viria das formas respectivamente grega e latina 'maios' e 'majus', com referência à Maia, mãe de Mercúrio-Hermes, simbolizando a terra, a grande mãe, à qual se faziam sacrifícios anuais  no quinto mês comum. O nome dessa divindade, por sua vez, viria do sânscrito 'mahi', significando 'terra', ou da raiz 'magh-', 'mag-', 'mah-', significando 'crescer', donde 'maior'.

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