quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Recriar

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Pedro Alexandrino. Cozinha na roça. 1894. Óleo sobre tela. 






(...) Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.




(Cora Coralina, Aninha e suas pedras)


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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Privilégio


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Mar de hortênsias em tempo de hortênsias. Dez. 2011
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Nada, nem sequer o verão
está completo. Menos ainda o colar
de sílabas que, desvelado,
te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca
te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
ao sol que declina, à estrela
do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
silêncio musical que do teu olhar
cai nos meus olhos
e regressa a ti acrescentado
pela luz da manhã varrendo o mar.



(Eugénio de Andrade, "Nada", in O sal da língua)
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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os céus de Isabela

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Ela é brava (no sentido italiano da palavra), bravissima. Indefinível. Não se parece muito com ninguém de sua idade. Melhor dizendo: não se parece com ninguém. Aos dezesseis, somente aos dezesseis, já se parece com ela mesma - e um dia saberá o privilégio que está nisso. Deixa no chinelo o que eu era aos dezesseis. Quero viver bastante pra ver toda a metamorfose, pra conhecer o mulherão em que ela se transformará. Agora se prepara para cruzar o oceano em voo solo, pra ver o que há do outro lado do mundo.  Outros céus a esperam. Outros céus para o seu olhar privilegiado. 









(esses recortes de céu são dela, evidentemente)
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domingo, 30 de outubro de 2011

From morn to night, my friend

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Caspar David  Friedrich. O peregrino acima do mar de névoa. 
1817-18. Óleo sobre tela; 94,8x74,8cm. Hamburgo, Kunsthalle



Does the road wind up-hill all the way?
   Yes, to the very end.
Will the day's journey take the whole long day?
   From morn to night, my friend.

But is there for the night a resting place?
   A roof for when the slow dark hours begin.
May not the darkness hide it from my face?
   You cannot miss that inn.

Shall I meet other wayfarers at night?
   Those who have gone before.
Then must I knock, or call when just in sight?
   They will not keep you standing at that door.

Shall I find comfort, travel-sore and weak?
   Of labour you shall find the sum.
Will there be beds for me and all who seek?
  
Yea, beds for all who come.



[Christina Rossetti (1830-1894), Up-Hill]
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domingo, 2 de outubro de 2011

Natureza-morta

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Pintura de Magdalena Wanli


É preciso fé para cortar as unhas,
cuidar dos dentes como bens de empréstimo.
O cobrador invisível bate à porta.
Não durmo, ele também não.
Deve ser amor o que nos deixa unidos
neste avesso de mística.
Por orgulho de pobre
dou por bastante a pouca claridade
e prefiro a vigília
antes que ter repouso.



(Adélia Prado. "Deve ser amor",
 in A duração do dia)
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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

gauche

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Juliette Aristides. Angel. Óleo sobre madeira; 11 x 8"



Veja se não sou eu este anjo aleijado
que pelo douramento superficial 
evoca adoráveis sonhos. 
Madeira talhada ou metal precioso? 
Apenas plástico - e de rebarbas, 
adorno luzente de árvore natalina. 
Veja se não sou eu este querubim torto 
de despregadas asas 
imobilizadas.
De tanto se debater no desejo do voo, 
cansou-se. 
E agora espera, 
espetado solitário numa parede fria: 
seu único movimento é o do olhar 
à janela invisível que o chama
dia
após
dia 
(quem sabe até o próximo dezembro?)
ao lugar insuspeitado onde rebrilha 
a vida.

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

17 movimentos

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Amedeo Modigliani. Retrato de Jeanne Hébuterne. 1918. 
Óleo sobre tela; 92 x 60cm. Paris, coleção  privada



Le monde intérieur
Le coeur humain avec
ses 17 mouvements
dans l'esprit
Et le va-et-vient de la
Passion



O mundo interior
O coração humano  com
seus 17 movimentos
no espírito
E o vai e vem da
Paixão



(Blaise Cendrars, 
Sur un portrait de Modigliani, 1918)

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terça-feira, 13 de setembro de 2011

shan shui

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Dong Yuan. Mountain Hall. c.934–962.

Nascida de uma tradição cultural espiritualista, a pintura chinesa antiga entendeu e realizou -  há mais de um milênio - o que a arte ocidental, enraizada na  tradição naturalista clássica também milenar, só veio a absorver e começar a manifestar lá pelo final do século XVIII-início do XIX: que a arte não consiste em espelhar com maior ou menor grau de idealização, mas com destreza técnica, um mundo tangível invariavelmente imperfeito. Um escrito do pintor de paisagens Qing Hao (900-960) fala que arte está em perceber a realidade na junção do material com o espiritual, de forma que o aspecto formal pode se apresentar em qualquer ponto de uma ampla escala de graus de naturalismo e /ou idealização: 
"A verossimilhança reproduz os aspectos formais dos objetos, mas não leva em conta o espírito; a verdade se mostra como perfeição na união de espírito e substância. Quem tenta transmitir o espírito por meio do aspecto formal e acaba por representar a mera aparência externa, produzirá uma obra morta” (Escrito sobre a pincelada; citado por F. Panzini. Progettare la natura).


Bada Shanren (Zhu Da; China, 1626-1705). Peixes e rochas. Dinastia Qing. 1699. 
nanquim sobre papel; 134,6x60,6cm. Nova York, Metropolitan Museum



À tradicional pintura chinesa embasada nesses princípios 
chamou-se shan shui, literalmente "montanhas e águas", 
o mesmo termo que em chinês significa 
"paisagem".

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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

pane o tulipani

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B. van der Ast. Tulipa. 1620s. Guache; 31,3x20,2cm. Paris, Institut Néerlandais


"No século XVII, a dilatação dos ambientes geográficos se conjugou ao gosto pelo excêntrico e pelo extravagante, dando lugar a uma verdadeira paixão  por todas as plantas que trouxessem a indistinta atribuição  de exóticas, com a consequência de fazer subir seus preços a cifras insensatas, como aconteceu com as tulipas. Antes do Seiscentos, a família botânica das tulipas era praticamente desconhecida na Europa, tendo sua principal região de origem na Ásia central. Bulbos foram plantados em Topkapi, em Istambul, e ali os embaixadores ocidentais os viram; o botânico Clusius os introduziu nos Países Baixos, onde, em presença de solos arenosos particularmente adequados ao seu cultivo, vingaram com sucesso particular.


Adriaen van der Spelt (1630-1673). Natureza-morta trompe-l'oeil, com flores e cortina. 1658.  
Óleo sobre madeira; 46,5 x 63,9cm. Chicago, Art Institute

  
   Já na primeira década do século XVII, iniciaram-se em torno a Haarlem as primeiras plantações comerciais, em coincidência com o surgimento da moda das espécies estrangeiras. Nos primeiros tempos, a produção concernia a plantas que, como acontece na natureza, produziam flores de uma única cor; mas os cultivadores holandeses, tecnicamente muito avançados, começaram experimentos  de hibridação, obtendo cruzamentos bicolores que apresentavam flamejamentos, matizamentos, modificações provocadas para conferir maior valor à planta. Em breve, a história mudou de hortícola para mercantil: comerciantes de Amsterdã publicaram seus catálogos de bulbos de tulipas, que foram difundidos entre os colecionadores europeus. Pela grande procura, os preços subiram vertiginosamente, enquanto os cultivadores se desafiavam na busca da obtenção de variedades sempre novas: multicoloridas, ou de flores brancas e azuis que imitavam porcelanas chinesas. Ao formar-se uma verdadeira mania, as tulipas floresceram não apenas nos jardins, mas sobre os tecidos, nas decorações da mobília doméstica, nos azulejos das famosas manufaturas cerâmicas de Delft, nas pinturas de tema floral." (Franco Panzini, Progettare la natura; minha tradução)


                                              Ladrilho de cerâmica azul e branca de Delft. Século XVII. 13,3x13,3cm.

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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Êxodo

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êxodo de primavera     pássaros clamam    a lágrima do peixe







imagem: Magdalena Wanli 
 hai-kai: Basho

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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O muro e a flor

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(...) 
Quem fez o amor não vazará meus olhos
porque busco a alegria.
A vida não vale nada,
por isso gastei meus bens,
fiz um grande banquete e este vestido.
Olha-me para que ardam os crisântemos
e morra a puta
que pariu minha tristeza.


(Adélia Prado. "Contra o muro", 
in O coração disparado)

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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Ínfimos faróis

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Um canto do quarto 15 do Casarão. junho de 2011



Vê: a luz, pela fresta,
estrela magnífica
e doméstica, vem,

acaso e matemática,
morder no copo
a água que dormiu à mesa.

Do corpo amado, da canção, 
de uma romã, de uma manhã qualquer
a lâmpada que se exala

pode não ser a morte da morte
e talvez não mostre a agulha perdida
na sala ou no tempo, mas

infringe, por ínfimo farol
que seja, certos escuros: um canto
do quarto, da dor, do olhar.

Dure apenas um minuto
a gema de um tal ardor,
sol tão pequeno,

há que se acender
em cada mínimo
a força da minúcia.


(Eucanaã Ferraz, in Desassombro)




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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Maravillas en el jardín

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(extratos do texto escrito para a exposição 
Mestres Espanhóis
Vitória, ES, agosto de 2011)


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Joan Miró. Litografia integrante do livro de Rafael Alberti 
Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Miró. 1975.



O catalão Joan Miró (1893-1983), pintor, gravador, escultor e ceramista está entre os mais notáveis e férteis artistas do século XX. Na década de 30, após uma crise criativa, começa a explorar novas possibilidades expressivas a partir de técnicas diversas: aparecem as colagens tridimensionais – que apontarão o caminho para a escultura e, mais tarde ainda, para a cerâmica – e sobretudo ganham surpreendente força as artes gráficas (gravura e desenho). Miró, por seu espírito investigativo e inquieto, destemido no enfrentamento técnico que almeja sua melhor e mais adequada expressão estética, é sem dúvida um dos maiores artistas de seu século. Nesse processo, a gravura foi um de seus veículos expressivos mais eloquentes, aquele que forjou o resultado final de sua linguagem. Sobre isso, o artista, que produziu em sua vida cerca de mil gravuras, nos diz:

“A gravura tem sido um meio de expressão fundamental para mim. Deu-me espaço para a libertação, para a expansão, para a descoberta. Contudo, no início eu era prisioneiro de suas limitações, de suas regras, de suas ferramentas e receitas muito dependentes da tradição. Eu precisei resistir, superá-las, e então um vasto reino de possibilidades estendeu-se diante dos meus olhos e à mão... Pouco a pouco, eu consegui domar esse despotismo. Posso usar uma sovela ou um buril, mas igualmente meus dedos, minhas mãos, uma unha ou uma velha chave de fenda. Eu também consegui romper com o uso do papel convencional, e comecei a imprimir sobre os papéis mais estranhos que se pode imaginar”. [J. Dupin,  in Miró Grabador, 1987]

A atenção de Miró volta-se para as artes gráficas no final da década de 20, a partir da frequentação de um círculo literário em Paris (Éluard, Breton), num momento em que o artista estava mais interessado em poesia que em pintura. De sua primeira ilustração para um livro, em 1927, até o fim de sua vida, ele produzirá cerca de 100 conjuntos de ilustrações literárias (entre as mais célebres: À toute épreuve, de Éluard (1947); Parler Seul, de Tzara (1950); Ubu-Rei, de A. Jarry (1966).

Na primeira metade da década de 70, Miró produz 21 litografias para o livro Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Mirò (1975), obra do poeta e dramaturgo espanhol Rafael Alberti (1902-99). No instante de sua execução, a técnica litográfica estava completamente dominada, vivida e transgredida, e o artista se via entregue aos improvisos e experimentações. Miró adorava comparar essa sua postura como artista com a de um “jardineiro”: aquele que cuida e experimenta para melhor criar.

As composições ainda têm aqui algo do lirismo sedutor da cor e do gesto que marcou sua produção dos anos 60. Contudo, em várias das Maravillas, o preto aparece como um signo decisivo, apanhando no voo o olhar do espectador, avançando para o primeiro plano, empurrando as notas de cor a planos secundários e as manchas suaves para mais longe, organizando assim a profundidade espacial. Os grafismos sugerem um código, uma linguagem a ser desvendada, como um hieróglifo ou um pictograma. Não são propriamente abstrações, assim como as improvisações do jardineiro Miró não são automáticas, fluido inestancável. As formas aqui são parte de uma construção calibrada e refletida, distanciadas do universo caótico dadaísta. No jardim de Miró, a realidade é reordenada, transfigurada por seus signos-códigos pessoais, e reapresentada ao espectador. São outras realidades, visões internas, não superficiais.


Outra Maravilla de Miró para o livro de R. Alberti (1975). Litografia


Assim como Miró parece recriar a linguagem com a forma gráfica, Rafael Alberti quer fazer pintura (que, aliás, foi sua primeira vocação) com a poesia. Ambos os artistas buscam um território comum entre poesia e pintura: meios diversos para uma mesma semântica. As litografias de Miró não são ilustração num sentido estrito de complemento visual de um texto, mas parte essencial da obra, sem a qual esta não se realiza. Em Alberti muitas vezes uma palavra que não existe semanticamente é capaz de se equiparar às formas visuais de Miró somente por seu conteúdo fonético, por seu efeito acústico. Lá e cá, abundam balbucios, interjeições, onomatopéias: todo um divertimento fônico colorido, um jardim de sonho, maravilha com variações plantada por jardineiro de talento.

 “Aprendi [Miró] por meio de várias experiências o que significa fazer um livro, não apenas ilustrá-lo, o que é sempre secundário. Um livro deve ter a dignidade de uma escultura em mármore” (R. Margit, in  Joan Miró: Selected Writings and Interviews, 1986).





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quinta-feira, 21 de julho de 2011

p a p i l l o t a g e

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p 
       p i
 l l o 
         t a
      g  e






Intervenção sobre pinturas de Odilon Redon:
 Borboletas. 1913. 64,8x49,8cm. coleção privada. 
 Evocação de borboletas. 1910-1912. Detroit  Institute of Arts

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Papillotage:| Mouvement des yeux qui les empêche de se fixer sur un objet. Papillotage des yeux. | Effet de ce qui éblouit et fatigue les yeux par des lumières, par des couleurs également vives. | Effet de ce qui éblouit l'esprit par trop de lumières et de couleurs, en parlant d'une oeuvre littéraire ou d'une oeuvre d'art. | Se dit des plis des draperies quand ils sont petits, mesquins, multipliés et trop rapprochés les uns des autres. | En sculpture, défaut d'un ouvrage qui offre trop de petites parties recevant des lumières étroites et portant de petites ombres. |  Il se dit d'une feuille imprimée, quand les caractères ont marqué double.


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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Les enluminures de mon livre de vol...





(moi, papillon)
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Qian Xuan. Peônias e borboleta (detalhe). séc. XIII. 
Pintura sobre seda; 55 x 96.9cm. Boston, Museum of Fine Arts



Beau papillon près du sol, 
à l'attentive nature
 
montrant les enluminures
 
de son livre de vol.

Un autre se ferme au bord
 
de la fleur qu'on respire - :
ce n'est pas le moment de lire.
 
Et tant d'autres encore,

de menus bleus, s'éparpillent,
 
flottants et voletants,
 
comme de bleues brindilles
d'une lettre d'amour au vent,

d'une lettre déchirée
 
qu'on était en train de faire
 
pendant que la destinataire
 
hésitait à l'entrée.



(Rainer Maria Rilke, Beau papillon près du sol -
tradução não sei de quem)



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segunda-feira, 18 de julho de 2011

todo ojos

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Intervenção sobre Cabeza de hombre, de Pablo Picasso. 



"Siempre es todo ojos.
No te quita ojos.
Se come las palabras con los ojos.
Es el siete ojos.
Es el cien mil ojos en dos ojos.
El gran mirón
como un botón marrón
y otro botón.
El ojo de la cerradura
por el que se ve la pintura.
El que te abre bien los ojos.
El ojo de la aguja
que sólo ensarta quando dibuja.
El que te clava con los ojos
en un abrir y cerrar de ojos."



(Rafael Alberti,
 "Los Ojos de Picasso",
 in Los 8 nombres de Picasso)
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