quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Jerônimo e nós

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Antonello da Messina. São Jerônimo em seu estúdio.
óleo sobre madeira; 46x36,5cm. Londres, National Gallery



Dentro da rica iconografia de São Jerônimo, o instante de que mais gosto é este que representa Antonello da Messina: o santo recolhido em seu escritório, compenetrado, trabalhando a tradução da Bíblia para o latim.
Ele viveu entre os séculos IV e V, e no dia de sua morte, 30 de setembro, são homenageados hoje todos aqueles que se dedicam ao nobre (porém árduo, mal pago e quase invisível) ofício da tradução.
Parabéns aos colegas!

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red & gold

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(com trechos de uma velha música na cabeça...)







... just  when this world
seems  mean   and  cold

our  love  comes   shining  
red and  gold

(and  all  the   
rest is by  the  way ) ...







Imagem original: P.-A. Renoir, Roses; música Dire Strais, Why Worry



quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Alegoria

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A inusitada porta da igreja de San Augustín de Quito, no Equador, me fez sonhar. Não há absolutamente nada aqui que sequer evoque as sombrias ameaças românicas de lançamentos ao inferno, nem ninguém julgando, ninguém condenando, ninguém se dizendo ser a própria porta...


Sobre duas folhas de madeira pintadas de vermelho profundo, estão dispostos em fileiras alinhadas diversos corações de metal. Corações alados, que criam um padrão decorativo vivaz e muito original.
O motivo é um atributo de Santo Agostinho, o bispo de Hipona, o doutor da igreja, a quem o santuário é dedicado.

("Nos has hecho para ti, Señor, y nuestro corazón estará insatisfecho hasta que descanse en ti" )








Mas eu prefiro deixar de lado as questões iconográficas e cristãs para pensar simplesmente noutra porta, mais acolhedora.
A porta é o convite para entrar, a possibilidade de abrigo e, ao mesmo tempo, de liberdade, a indicação de um caminho, o lugar da recepção, o entremeio... E sobre esta aqui se expõem, planos, evidenciados e simples, os corações, que assim se oferecem, se doam, enquanto convidam.

  

Com esta porta, eu sonho.
Por esta porta, eu entraria.







segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Arabescos

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Ele se foi.

Eu permaneço.

 

E mesmo que hoje minhas mãos volteiem ao se ferir na lida no jogo nas quedas, e as dele dancem macias e suaves noutros corpos e delícias,
e que arrastemos conosco a pena infinda de nossas tramas pesadas tecidas nos instantes do amor possível e fácil – e dos hiatos dilacerantes das ausências, das distâncias –, há um vazio maior: o que tangencia os arabescos infinitamente paralelos lineados no ar e entalhados no tempo pelos acenos de nossas mãos que um dia disseram

adeus.





Fotografia original: Isabela de Andrade
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Oco

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Ele se foi assim

como o dia que de improviso se muda

e se muda em noite sem me levar consigo.

E eu permaneço

estátua de sal

em torno da qual orbitam

desgarrados

os ecos desnorteados

de seus muitos ruídos.

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sábado, 11 de setembro de 2010

Vere novo

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Eis que é chegado novamente o tempo da renovação.
Tempo de verdejar e de florescer; tempo de exuberância.

Nenhuma estação deve ter sido mais cantada do que a primavera, que reinicia o ciclo da vida após o árido descanso invernal. Fácil é fazer a analogia com todos os recomeços, os nascimentos, as esperanças.

Para nós, a primavera acontece em setembro. No hemisfério norte, após o degelo de março, com a elevação das temperaturas, os homens voltavam ao trabalho nos campos e até as guerras podiam ser retomadas - e daí março ser o mês dedicado a Marte, o deus guerra.

Primavara (romeno); primvers (provençal); primevoire (francês arcaico), primavera (português, espanhol, italiano e catalão). Do hemisfério norte vêm ainda a palavra que designa este tempo de esplendor. De sua etimologia (primus-ver), 'prima' vem do latim primus, significando 'primeiro', com a possibilidade de também dizer 'antes'.  Do restante, ver-véris remeteria tanto à estação  seguinte e a mais quente de todas, o 'verão', quanto às 'flores'. De ver, no entanto, supõe-se uma raiz de origem no caminho veser-vasantas, que remontam ao sânscrito vas, com o sentido de 'arder', 'resplandecer'. 
A palavra, portanto, traz não apenas um aspecto semântico bastante rico, mas uma vasta sugestão de imagens. A 'primeira estação' do hemisfério norte (no francês, lieralmente primtemps) é o tempo que precede o calor do verão, o tempo do florescer, o tempo do primeiro esplendor.

vere novo (lat.): o começo da primavera









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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O amor tem muitos nomes

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Para a Pepa-Pepinha-Pepita-Peputcha,
que de palavras não sabe nem sonha, mas hoje nos deixa tendo sabido (e vivido) um pouquinho do amor



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Pepinha assim que chegou em casa, bebê, há sete anos





Numa vida inteira quantos nomes será que o amor pode ter?
Nomes sérios, que se acompanham de sobrenomes ainda mais sisudos, ou apelidos carinhosos, curtinhos e saborosos, que se multiplicam sem cessar conforme os trejeitos do muito afeto.
Nome de mãe, nome de pai, os primeiros que a gente aprende e nunca esquece: nome de pedir socorro, abraço e colo.
Nome de filho, que é escolha séria e calibrada, plantada junto com a semente que enraiza e jamais jamais se vai...
Nome de irmão, de mano, de quem compartilha.
Nome de amigo, que é letra e melodia quando se escuta do outro lado da linha ou quando se enxerga, em destaque imediato, entre as linhas monótonas do correio virtual.
Nome de namorado, que a gente guardava com o baú  das cartas, quando o correio era mais lento e as esperas imensas, e depois sonhava, e repetia em voz alta nas falas solitárias, e anotava nos diários...
E um nome de rua, um nome de cidade, quem nunca amou?
Nome de bicho...



Nome de bicho: desses possíveis (tantos!) nomes do amor isso sim tem muita gente que não sabe.... E eu sinto pena de quem nunca provou deste, uma pena que é bastante próxima da que experimento em relação àqueles que, por diversas razões, são incapazes até mesmo de enxergar-ver-avistar o ipê branco que se abre todos os anos na praça e a abraça inteiro com sua copa generosa e deslumbrante, protagonista absoluto da cena. Pisam suas flores, mas não olham para cima. Não se dão conta.



Então é hora de confessar aqui meu preconceito terrível contra dois tipos de gente (que, na verdade, costumam se reunir num só): gente que não gosta de criança e gente que não gosta de animais. Nem passo perto!





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Um dia, há sete anos, passando de carro em frente à veterinária já avistei a gaiolinha das doações com uma caixinha dentro. Tinha gente pequena ali. Fui ver. Um filhote lindo de morrer, bege tigrado de olhos imensos de um azul asa de borboleta rara. Veio serelepe, já sabendo, a danada, de como era sedutora. Enquanto eu corria pra ela, uma moça tomou a minha frente e a apanhou no colo, a gata linda. "Eu vi primeiro", me disse de uma forma irritante. "Tá bom", pensei comigo, e já me virava pra ir embora quando avistei no fundo da caixinha de papelão dois outros olhões brilhantes, menos belos, certamente, e tímidos, e tristes, exatamente como mostra a fotografia que escolhi. Irmã da radiante, muito menos radiante, estava ali a Pepita, que apanhei imediatamente e levei pra casa.
Eu já tinha a Nina, um ano mais velha, e queria uma companheira para ela. Também a Nina viera da mesma gaiola dos bichinhos abandonados. Uma semana mais tarde, a moça afobada que havia levado a irmã loura da Pepinha a devolveu, alegando que fazia estragos demais, bagunça demais. E foi assim que a Lola veio também morar conosco. Arrumamos, de repente, um delicioso balaio de gatas!




                      Lola, Pepa e Nina, meu balaio de gatas


Nina é a dona do pedaço, a primeira a comer, a que decide; Lola é a bela (exibiiiiiiida!); Pepinha, a resignada, humilde, isolada, retraída, talvez triste. Não disputava as fatias de presunto, levava uns chega-pra-lá da Nina, era a primeira a se retirar nas situações alegres. Era, enfim, a mais frágil, aquela mesma que ninguém via no fundo da caixinha surrada em que a conheci. Mas eu a vi. E ela sabe disso.

Neste momento, enquanto escrevo este texto, Pepinha está aqui ao lado, embrulhadinha no cobertor, imóvel. Agoniza após uma semana de internação e sofrimentos inúteis. Somente os olhos tristonhos de sempre me acompanham, me fixam, não me deixam... Mais oblíquos do que nunca, secos e fundos. Se eu desapareço por um instante de seu campo de visão, ela me recebe com miado fraco assim que retorno. Será que me chama? Seus olhinhos baços me dizem que, embora sua vida tenha sido breve e bem pouco emocionante, ela sabe sim que faz parte da minha história e da da minha filha e, sobretudo, que o seu nome é um daqueles a que eu chamo amor.

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Empatia

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Meio dia de um dia
azul
(em mim)
No contratempo do vermelho,
ele carrega outra palavra
        outra cor


E enquanto parte
- nem me viu -
me deixa todo o sentimento

 

 
'Empatia'
[ segundo o Houaiss ]: 
| 1 faculdade de compreender emocionalmente um objeto
| 2 capacidade de projetar a personalidade de alguém num objeto,
de forma que este pareça como que impregnado dela
| 3 capacidade de se identificar com outra pessoa,
de sentir o que ela sente,
de querer o que ela quer (...)