segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Decorum

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Uma amendoeira perdendo folhas. Fotografia original da net; minha reelaboração




Imaginassem as amendoeiras
que estamos no outono.
Vestem-se como.

Púrpura, ouro,
estão perfeitas como estão:
erradas.

Pudesse um poema, um amor,
pudesse qualquer esperança
viver assim o engano:

beleza, beleza,
beleza,
mais nada.



(Eucanaã Ferraz, in Desassombro)

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Três dias

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Uma ideia jacente em muitas naturezas-mortas
ocidentais pode ser vista num haicai de Ryôta:
apenas três dias dura o florescer da cerejeira




Katsushika Hokusai (1760-1849).
Cerejeira em flor e pássaro.





Nem sequer três dias

este mundo vê passar –

Cerejeira em flor!



Haicai de Ôshima Ryôta (1716–1787)



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sábado, 29 de janeiro de 2011

sol e lua

Para a querida amiga Patrícia




Na agradável arquitetura interna (a externa não é agradável) de N. S. da Agonia,
o improvável encontro do sol e da lua - janeiro de 2011




Cada vez mais eu tenho me convencido de que o improvável acontece apenas quando não estamos ansiosamente procurando por ele, sobretudo quando é um improvável desejado e sonhado. Pode ser numa passadinha por acaso no google ou num encontro numa esquina... Com certeza, o improvável acontece e muda toda uma história.

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Azul (de fio a fio)

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Uma praia de Ubatuba de que não me lembro o nome.
E nem estava assim azul o dia, nem o mar - era só impressão, ou engano.




Ei-lo, à beira-mar: o azul.
Lápis-lazuli que fosse, à flor da terra
e da água

As mãos pródigas,
dá-se à pura força,
às ultimas formas de tingir.

Voz em riste, canta
a todo pano, à saciedade.
A praia é sua de palmo a palmo e,

de moto próprio, estende-se - fio
de prumo onde o sol se equilibra
de fio a fio.



(Eucanaã Ferraz, in Desassombro)

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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

"Um oboé em Bach"

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Imagem fotográfica retrabalhada a partir de (mais) um original da Bela




O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa,
o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este, dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas,
amarelo e quente, o minúsculo ponto,
o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas
a pura luz de seu nome,
a cor tropicordiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.



(Adélia Prado, "Louvação para uma cor, in Bagagem)

sábado, 22 de janeiro de 2011

Da casa de argila




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Um trechinho revirado de uma significativa casinha de argila nada metafórica



Sou artista, pintor. Desenho imagens.
Nenhuma se compara a teu fulgor.
Sei criar mil fantasmas, dar-lhes vida.
Mas se vejo teu rosto, dou-lhes fogo!

Serves teu vinho ao ébrio na taberna
e abates toda casa que construo.
Nossa alma em ti se dissolve:
água na água, vinho no vinho.

Sinto teu perfume.
Cada gota de meu sangue te implora:
"faz-me teu par, dê-me tua cor!"
Sofre minha alma na casa de argila.


Entra, amado, senão hei de partir!




do poeta afegão Jalal al-Din Al Rûmî (1207-1273),
tradução de Marco Lucchesi,
in A sombra do amado



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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Capricho

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Deus me fez por impulso. Primeiro pensou um coração imenso, de casca tão fina, mas tão fina, que era transparente. Achou bom que tivesse espaço de sobra, porque o encheu com um punhado de substantivos abstratos, dos mais impalpáveis, dos mais impossíveis, inacreditáveis e risíveis. Completou cada vão restante com uns sonhos gorduchos e flácidos. Achou que estava bom, mas, com a primeira brisa, eu-coração subi em vôo. Não ficava no lugar. Então decidiu me ancorar, e em torno de mim-coração costurou uns apetrechos que considerou de utilidade em seu mundo pragmático. Foi assim que ganhei  esses olhos enormes e escuros: um de ver de perto, mas que vê demais, e outro de ver de longe, mas faz tempo que foi furado (fabriquei mais tarde eu mesma um olho de vidro – que não fecha mais). Para equilibrar o peso dos olhos, me fez essa bocarra de falar bem baixo pra ninguém ouvir e ali dentro colocou essa língua longa de insistir em despropósitos.  E a garganta me fez estreita de tanto medo que tinha dos sapos-de-engolir, numa precaução que não adiantou muito. E me fez um estômago pequenino, pela facilidade de se acomodar numa cavidade do meu corpo-coração sem necessitar de mais costuras.  Não me deu dentes nem pernas, nem pés, porém, orgulhoso, modelou no barro o que me disse depois ser a minha maior delicadeza: duas mãos minúsculas, mãozinhas de pegar vento e deixar fugir, de afagar e construir. Mãos que escrevem muito, mas muito torto, e tudo errado. E soprou-me enfim a alma pela boca grande: assustada, encolheu-se em algum canto que ainda não sei.  Assim que abri meus olhos, ele me saudou, e meu olho de ver de perto enxergou sua decepção e até ouviu - que era olho de ouvir também - um “você está pronta pra errar”. Então me cobriu com um vestido de renda, me acomodou na prateleira e foi descansar pensando num projeto melhor, talvez um projeto de gente.

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Worthwhile

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(A quem mais, senão a você?)




Umas hortênsias fotografadas pela Bela,
para alegrar um pouquinho um dia cinza




Confesso que nunca morri de amores pela língua inglesa, nem nos tempos de colégio, nem durante os anos em que me empenhei em seu estudo. No entanto, também nela encontrei, ao longo dos anos, uns punhados de palavras saborosas para o meu caderninho de colecionadora. Uma delas é a que dá título a esta postagem: worthwhile.

Conheci essa palavra na voz de Nat King Cole, cantando Smile. Worthwhile é aquilo que é suficientemente importante, ou bom, ou especial, para justificar o tempo, a atenção, o esforço de alguém. Worthwhile é simplesmente o que vale a pena. E o tempo, de que tanto venho falando, faz parte da composição dessa palavra - while: enquanto.

Por ora, na falta de palavras minhas, deixo aqui as da linda canção:





Smile though your heart is aching
Smile even though it’s breaking
When there are clouds in the sky, you’ll get by
If you smile through your fear and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You’ll see the sun come shining through for you

Light up your face with gladness
Hide every trace of sadness
Although a tear may be ever so near
That’s the time you must keep on trying
Smile, what’s the use of crying?
You’ll find that life is still worthwhile
If you just smile


That’s the time you must keep on trying
Smile, what’s the use of crying?
You’ll find that life is still worthwhile
If you just smile


(Smile - John Turner, Geoffrey Parsons, 1954)



 


 




segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sherazade

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Esta historinha obviamente é uma paráfrase das Mil e uma noites,
mas também se inspira no conto "Palavras aladas", de Marina Colasanti
in Doze reis e a moça no labirinto do vento




Virginia Frances Sterrett. Scherazade went on with her story,
 ilustração para one Thousand and one nights.1928


Era uma Sherazade. E por mil e uma noites ela distraiu o rei com suas histórias, na tentativa de ganhar o seu amor e livrar-se da morte.

Era uma Sherazade, mas uma Sherazade que não podia falar. Uma Sherazade muda, como eventualmente o destino quer. E porque lhe fora tolhida a voz, ela então usava encharcar os pincéis em azul da china e depositava em seus cadernos carreiras e mais carreiras de manchas e traços e curvas e pontos de maior ou menor sentido, de maior ou menor beleza: radiantes no plenilúnio, mais doces e tristes quando a negra asa da noite apagava a lua e espargia estrelas baças.

Palavras.
Chamavam-se palavras essas criaturas que ela conheceu quando ainda menina, na sementeira que descobrira certa tarde no fundo do quintal da casa do pai. Colecionava-as desde então. Havia de todas as cores, formas, texturas. Palavras aladas, palavras de fogo, palavras de nuvens.
Para ele, o rei, assim que o sol debandava lá para o outro lado do mundo, ela escolhia e colhia as melhores, as mais belas, as mais finas... E para ele também até chegou a inventar uma gaveta cheia de palavras novinhas. Com estas e aquelas, a moça urdia carinhosamente as tramas mais variadas, mais ou menos longas, mais ou menos firmes.

E a essa tarefa se dedicou por noites e noites à luz de uma lâmpada de cabeceira, muitas vezes tremendo pelo cansaço nas mãos, na cabeça, no peito, muitas vezes tremendo de frio... até que a primeira fita de sol viesse bater à sua janela e se enroscar no seu cabelo.
O rei de fato gostava muito daquelas palavras que recebia a cada manhã. Gostava tanto, que ia adiando a execução de Sherazade. Dizia (ele mesmo) sorrir ao encontrá-las assim tão bonitas, um sorriso que o enternecia e que o acompanhava, loooooongo, como a luz do verão. Certa vez, entristecido, pediu que Sherazade não o deixasse sem elas.
Sim, ele gostava delas (e de Sherazade)...
Mas ela, pobrezinha, só tinha para ele aquelas palavras, seres ligeiros e delicados demais para sustentar um mundo de barro, de pedra e de tantos relógios. Seres inúteis.
E Sherazade não sobreviveu às mil e uma noites de tramas.
Seu esforço foi em vão.

Exasperado com a história interminável e convicto da inutilidade das palavras, o sultão mandou, por fim, que cortassem a cabeça da moça. Mas em homenagem às belas histórias com as quais ele se entreteve por tanto tempo, fez a ela uma pequena memória permitindo que fosse sepultada em seu jardim. E ordenou que seu jazigo estivesse sempre adornado de flores: rosas, que ela gostava, e narcisos quando fosse época. Um pequeno e contraditório gesto de afeto.



Visita de um jovem a um dervixe (detalhe). início do séc. XVII.
guache e ouro sobre papel; 21,2x12,1cm. Paris, Museu do Louvre.



Passado algum tempo, entretanto, o sultão se deparou com um problema inusitado, resultante da arrastada passagem de uma brava colecionadora de palavras em sua vida: não se sabe como, mas as manchas de azul da china aos poucos escaparam dos cadernos e foram se alojando, se infiltrando por todos os recantos do palácio. A maioria se manteve em sua formação original. Destas, muitas eram sorrateiras e suaves, e ele ocasionalmente as encontrava numa dobra de lençol, encolhidinhas... E nem percebia o quanto se alegrava por poder vê-las novamente naquela hora da noite em que tudo silencia tão profundamente que até o coração se inquieta. E ele saía do leito, apanhava a lâmpada e fazia a ronda pelos cantos. Quase sempre encontrava mais algumas.
Vez ou outra, contudo, ele acordava sobressaltado com o grito de alguma palavra furiosa, daquelas afiadas e disformes. Eram raras, mas havia. Alguém poderia acabar se machucando. Mas pior do que isso era tropeçar nos corredores ou a caminho das fontes do jardim (em especial se coincidisse com uma luminosa jornada de abril), numa palavrinha triste... Por mais miúda que fosse, ela apagava o sol, e o coração do rei se torturava.
Sentia saudades.
Não queria sentir.
Uma vez, ao apanhar um livro na estante, dois pontos de uma reticência cindida caíram bem dentro de seu olho direito, e deu o que fazer para poder tirá-los. Aquilo irritou profunda e definitivamente o soberano.

 
Foi então que ele decidiu que se caçassem aquelas criaturas que ganharam vida própria. Mandou abrir uma vala profunda o bastante para ali enterrar, e eternamente, as perigosas palavras de Sherazade. Enquanto isso se fazia, ordenou a todos na corte, sem exceções, que se procurassem as palavras da moça por todos os cantos. Para que nada restasse perdido, alertou o rei para os travessões que se enfiavam nas frestas dos pisos, para as ardilosíssimas cisões eventuais, para os pontos dispersos, as interjeições de espanto, as miudezas quase transparentes das entrelinhas e, em especial, para aquelas desagradáveis declarações de amor disfarçadas em metáforas coloridas.

Assim foi feito.
Ao término de uma semana, a limpeza estava concluída.
E não foi surpresa ver o jardim coberto por sacos e sacos das palavras de Sherazade.
Inquietas, elas se debatiam freneticamente, desejando escapar. Seu rumor ora se assemelhava à gritaria de um bando de maritacas em revoada, ora se tornava em um verdadeiro samba do crioulo doido. Primeiramente, o rei bem que havia pensado em separá-las por cor, depois por qualidade matérica, mas finalmente entendeu que só teria sucesso se as separasse por classe. Era preciso evitar qualquer tentativa de agrupamento sintático. Só assim nenhuma frase inteira poderia vir do nada puxar o pé do soberano numa madrugada fria ou assustá-lo ao se esconder atrás das portas.
O saco dos pontos de interrogação era o maior de todos. Coisa imensa e imensamente incômoda! Mandou com eles forrar a vala, o que, ademais, foi um alívio extremo, pois nos últimos tempos era fácil aquelas coisas serem encontradas e usadas como brinquedos por crianças, que infernizavam a vida dos adultos com saraivadas de perguntas difíceis. Verdadeira praga!
Depois foram lançados os adjetivos e os advérbios, esses trambolhos inúteis! Alguns tão doces, que as formigas começavam a rodear a área; outros tão perfumados, que as abelhas se achegavam sem parar; outros tão longos, que precisaram ser dobrados ou cortados. E havia deliciosos saquinhos de risadas, pacotinhos de suspiros, baciadas de ‘e se’.
E assim todas as palavras que Sherazade escrevera em mil e uma noites encontraram seu destino ingrato, tal e qual o de sua própria criadora.
De vez em quando chegava o boato de que alguém, passando sobre a vala depois transformada em um aparazível jardim, tinha escutado uma frase solta ou um eco arrevesado de uma afirmação qualquer.
Bobagem.
Um silêncio sem precedentes preenchia agora os aposentos, se derramava pelos pátios e parecia até mesmo calar as fontes.


Os anos se passaram e o sultão alcançou a fase extrema de sua vida. Nenhuma palavra, até onde era sabido, havia escapado da vala, e o mato se apossou completamente da sepultura de Sherazade, que de rosas e narcisos nunca mais soube. Outras tantas cabeças haviam sido cortadas, e o rei, que nunca encontrou a satisfação pessoal, foi-se entristecendo a olhos vistos, caindo mais depressa do que as tardes invernais. Até que um dia se foi, ele também.
Terminadas as celebrações fúnebres foi que encontraram, sob os travesseiros em seu leito, uma caixinha delicadamente cinzelada fechada à chave. Ali se comprimiam, em seu azul luzente, uma centena das inúteis criações de Sherazade: palavras de amor e cuidado, e carinho e afago, as mais belas, as mais doces, as mais ternas. E para cada uma delas, guardada com o mesmo cuidado, havia uma palavra do próprio rei que lhe fazia o par. Faltava apenas uma, que aquela ele não havia aprendido.






sábado, 15 de janeiro de 2011

Nuit étoilée

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Ma nuit étoilée. Colagem de fotografias minhas e da Bela, retrabalhada.


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Blindfolded

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Cupido vendado, detalhe da Primavera, de Sandro Botticelli. c.1482.
Têmpera sobre madeira; 203x314cm. Florença, Galleria degli Uffizi




A discussão sobre a cegueira de Amor é complexa e longa, longa, longa... A imagem remonta à literatura da antiguidade clássica, ganha corpo nas artes visuais na Idade Média e segue pelo Renascimento... Não vou me ater a essa discussão (quem quiser saber  mais, pode ler "Cupido, o cego", nos Estudos de iconologia, de E. Panofsky). O fato é que o Amor, na maior parte das vezes -  referendando de certa forma a ideia platônica de que o mais nobre dos sentimentos só pode nascer a partir do mais nobre dos sentidos, a visão - está apenas vendado, impossibilitado de ver com os olhos físicos, mas continuando a enxergar com os olhos da mente. Se se engana, é só porque é uma criança que não sabe escolher...

(Belas saídas! Gosto delas.)


Pois esta semana, quando todo o país vem se comovendo com a tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, assisti, também comovida, a muitas cenas em que o amor se afasta completamente de qualquer possibilidade de cegueira. Numa delas, uma senhora se recusava a deixar a casa condenada (de onde todos já tinham debandado) porque isso significaria ter de abandonar ali o companheiro de uma vida inteira, imobilizado na cama por um AVC, cheio de sequelas. E ela contou isso ao repórter enquanto colocava a cabeça paralisada do marido no colo e carinhosamente lhe afagava os cabelos que caíam pelo rosto desfigurado.


E me lembrei de um soneto em que o velho Camões desloca a cegueira relativa ao amor:


Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido (...)
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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Puisse ton regard

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(...)

L'histoire d'un arbre, il faut toujours la lire:

un arbre, quand il est prêt à mourir,
ne pleure jamais, et il n'est jamais à part
de la nature qu'il goûte sous la pluie

san se donner la peine de sourire.
Puisse ton regard, ma fleur, puisse ton regard
voir les couleurs, sans plus, de ce jour-ci.



(Tite de Lemos, XXXV, poema de 1988.
 As duas fotos são da Isabela)



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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Enquanto (still life)

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o mesmo par de lichias fotografado outro dia e refotografado hoje




e assim mais tarde quando
 me procure quem sabe a
morte angústia de quem
vive quem sabe
a solidão fim
de quem
ama
eu possa
me dizer do amor
que tive que não
seja imortal posto que
é chama
mas que seja
infinito enquanto
dure




Na última estrofe do famoso Soneto de fidelidade de Vinícius de Moraes, a palavra mágica é a conjunção temporal "enquanto". "Enquanto" tem algo do ar triste e do gosto ruim dos ameaçadores condicionais. Essa palavra, porém, nos lembra que toda matéria se inscreve completamente no tempo, sobretudo a matéria que constitui a nós mesmos, com nosso pesado invólucro corporal e tudo que dentro dele e para além dele - intangível - sonha, ama, pulsa... Se o tempo é o senhor das coisas e inexoravelmente tudo aniquila, a duração para além da nossa própria finitude deve ser da ordem da pretensão humana. O único tempo possível me parece ser o presente do indicativo, onde vivem o enquanto e o ainda: que não são ameaças à duração, mas trazem a possibilidade da completude da duração, quase um infinito, eu diria, assim mais humilde, mais modesto, mais chão... Dessa forma, posso dizer que, sim, eu creio nos amores eternos.

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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

"Uma rosa é uma rosa..."

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(será?)


 
Roseira fotografada pela Bela num dia distante, numa terra distante.
Fotografia remexida por mim, pra variar...




 
Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão noites em claro
rendidos à forma prima:
a rosa é mística.



(Adélia Prado, "Teologal", in Oráculos de maio)

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terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Mantiqueira chora

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Hoje, aqui pertinho de casa. Uma foto de composição meio holandesa, só pra falar do céu.



O topônimo 'Mantiqueira', como quase todos no Brasil, vem do tupi-guarani, e indica duas possibilidades etimológicas:


amanti | amandi (chuva) + iquiri (morada)
ou
amana (chuva) + tiquira (gotejar)







Nasci no vale do Paraíba fluminense, fui criada na Mantiqueira mineira e morei em vários lugares diferentes, o que muitas vezes me fez pensar ter perdido um pouco a sensação de pertencimento a algum trecho especial de chão. Eu só descubro que isso não é verdade quando saio da Dutra em Lorena e o carro de repente aponta para aquele respeitável paredão de morros que é preciso escalar. Aí, sim, só aí, eu sinto estar voltando pra casa...

Pois fui criada aqui, no verde e azul da serra da Mantiqueira.
No entanto, uma das lembranças mais vivas e distantes que guardo é a da cortina de nuvens branca, branca, e densa, que se derramava - e continua a se derramar - pela serra invariavelmente todos os janeiros. Pontualmente.
Nesse tempo de recolhimento meio forçado, eu gostava de ficar na janela vendo aqueles chumaços de nuvens que se esgarçavam pelas dobras dos morros ao cair, um atrás do outro, durante dias e dias... E assim, na minha memória afetiva, a Mantiqueira de janeiro (mas apenas a de janeiro) é mesmo a morada da chuva ou, quem sabe, o lugar onde a chuva goteja e goteja...

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domingo, 2 de janeiro de 2011

Rima

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Para a minha Belinha,
a quem cabe muito bem a mencionada rima.



No chão da nossa sala, revirada, uma flor apanhada pela Bela,
que fez a fotografia original, retrabalhada por mim.





Amai trite parole che non uno
osava. M’incantò la rima fiore
amore,
la più antica difficile del mondo.

(Umberto Saba, Amai)






Amei palavras batidas que ninguém
ousava. Encantou-me a rima flor
amor,
a mais antiga e difícil do mundo.

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