quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Capricho

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Deus me fez por impulso. Primeiro pensou um coração imenso, de casca tão fina, mas tão fina, que era transparente. Achou bom que tivesse espaço de sobra, porque o encheu com um punhado de substantivos abstratos, dos mais impalpáveis, dos mais impossíveis, inacreditáveis e risíveis. Completou cada vão restante com uns sonhos gorduchos e flácidos. Achou que estava bom, mas, com a primeira brisa, eu-coração subi em vôo. Não ficava no lugar. Então decidiu me ancorar, e em torno de mim-coração costurou uns apetrechos que considerou de utilidade em seu mundo pragmático. Foi assim que ganhei  esses olhos enormes e escuros: um de ver de perto, mas que vê demais, e outro de ver de longe, mas faz tempo que foi furado (fabriquei mais tarde eu mesma um olho de vidro – que não fecha mais). Para equilibrar o peso dos olhos, me fez essa bocarra de falar bem baixo pra ninguém ouvir e ali dentro colocou essa língua longa de insistir em despropósitos.  E a garganta me fez estreita de tanto medo que tinha dos sapos-de-engolir, numa precaução que não adiantou muito. E me fez um estômago pequenino, pela facilidade de se acomodar numa cavidade do meu corpo-coração sem necessitar de mais costuras.  Não me deu dentes nem pernas, nem pés, porém, orgulhoso, modelou no barro o que me disse depois ser a minha maior delicadeza: duas mãos minúsculas, mãozinhas de pegar vento e deixar fugir, de afagar e construir. Mãos que escrevem muito, mas muito torto, e tudo errado. E soprou-me enfim a alma pela boca grande: assustada, encolheu-se em algum canto que ainda não sei.  Assim que abri meus olhos, ele me saudou, e meu olho de ver de perto enxergou sua decepção e até ouviu - que era olho de ouvir também - um “você está pronta pra errar”. Então me cobriu com um vestido de renda, me acomodou na prateleira e foi descansar pensando num projeto melhor, talvez um projeto de gente.

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2 comentários:

  1. ... aí, foste ser gauche na vida, e até hoje talvez não imagines o tanto que amenizas o inóspito de caminhos próximos e distantes, aqui e ali...

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  2. É... anjos tortos têm passado por aqui.
    O problema do gauche é que ele só ameniza caminhos de outros gauches. Mas está bem assim.
    beijos

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