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Esta historinha obviamente é uma paráfrase das Mil e uma noites,
mas também se inspira no conto "Palavras aladas", de Marina Colasanti
in Doze reis e a moça no labirinto do vento
Virginia Frances Sterrett. Scherazade went on with her story,
ilustração para one Thousand and one nights.1928
Era uma Sherazade. E por mil e uma noites ela distraiu o rei com suas histórias, na tentativa de ganhar o seu amor e livrar-se da morte.
Era uma Sherazade, mas uma Sherazade que não podia falar. Uma Sherazade muda, como eventualmente o destino quer. E porque lhe fora tolhida a voz, ela então usava encharcar os pincéis em azul da china e depositava em seus cadernos carreiras e mais carreiras de manchas e traços e curvas e pontos de maior ou menor sentido, de maior ou menor beleza: radiantes no plenilúnio, mais doces e tristes quando a negra asa da noite apagava a lua e espargia estrelas baças.
Palavras.
Chamavam-se palavras essas criaturas que ela conheceu quando ainda menina, na sementeira que descobrira certa tarde no fundo do quintal da casa do pai. Colecionava-as desde então. Havia de todas as cores, formas, texturas. Palavras aladas, palavras de fogo, palavras de nuvens.
Para ele, o rei, assim que o sol debandava lá para o outro lado do mundo, ela escolhia e colhia as melhores, as mais belas, as mais finas... E para ele também até chegou a inventar uma gaveta cheia de palavras novinhas. Com estas e aquelas, a moça urdia carinhosamente as tramas mais variadas, mais ou menos longas, mais ou menos firmes.
E a essa tarefa se dedicou por noites e noites à luz de uma lâmpada de cabeceira, muitas vezes tremendo pelo cansaço nas mãos, na cabeça, no peito, muitas vezes tremendo de frio... até que a primeira fita de sol viesse bater à sua janela e se enroscar no seu cabelo.
E a essa tarefa se dedicou por noites e noites à luz de uma lâmpada de cabeceira, muitas vezes tremendo pelo cansaço nas mãos, na cabeça, no peito, muitas vezes tremendo de frio... até que a primeira fita de sol viesse bater à sua janela e se enroscar no seu cabelo.
O rei de fato gostava muito daquelas palavras que recebia a cada manhã. Gostava tanto, que ia adiando a execução de Sherazade. Dizia (ele mesmo) sorrir ao encontrá-las assim tão bonitas, um sorriso que o enternecia e que o acompanhava, loooooongo, como a luz do verão. Certa vez, entristecido, pediu que Sherazade não o deixasse sem elas.
Sim, ele gostava delas (e de Sherazade)...
Mas ela, pobrezinha, só tinha para ele aquelas palavras, seres ligeiros e delicados demais para sustentar um mundo de barro, de pedra e de tantos relógios. Seres inúteis.
E Sherazade não sobreviveu às mil e uma noites de tramas.
Seu esforço foi em vão.
Exasperado com a história interminável e convicto da inutilidade das palavras, o sultão mandou, por fim, que cortassem a cabeça da moça. Mas em homenagem às belas histórias com as quais ele se entreteve por tanto tempo, fez a ela uma pequena memória permitindo que fosse sepultada em seu jardim. E ordenou que seu jazigo estivesse sempre adornado de flores: rosas, que ela gostava, e narcisos quando fosse época. Um pequeno e contraditório gesto de afeto.
Exasperado com a história interminável e convicto da inutilidade das palavras, o sultão mandou, por fim, que cortassem a cabeça da moça. Mas em homenagem às belas histórias com as quais ele se entreteve por tanto tempo, fez a ela uma pequena memória permitindo que fosse sepultada em seu jardim. E ordenou que seu jazigo estivesse sempre adornado de flores: rosas, que ela gostava, e narcisos quando fosse época. Um pequeno e contraditório gesto de afeto.
Visita de um jovem a um dervixe (detalhe). início do séc. XVII.
guache e ouro sobre papel; 21,2x12,1cm. Paris, Museu do Louvre.
Passado algum tempo, entretanto, o sultão se deparou com um problema inusitado, resultante da arrastada passagem de uma brava colecionadora de palavras em sua vida: não se sabe como, mas as manchas de azul da china aos poucos escaparam dos cadernos e foram se alojando, se infiltrando por todos os recantos do palácio. A maioria se manteve em sua formação original. Destas, muitas eram sorrateiras e suaves, e ele ocasionalmente as encontrava numa dobra de lençol, encolhidinhas... E nem percebia o quanto se alegrava por poder vê-las novamente naquela hora da noite em que tudo silencia tão profundamente que até o coração se inquieta. E ele saía do leito, apanhava a lâmpada e fazia a ronda pelos cantos. Quase sempre encontrava mais algumas.
Vez ou outra, contudo, ele acordava sobressaltado com o grito de alguma palavra furiosa, daquelas afiadas e disformes. Eram raras, mas havia. Alguém poderia acabar se machucando. Mas pior do que isso era tropeçar nos corredores ou a caminho das fontes do jardim (em especial se coincidisse com uma luminosa jornada de abril), numa palavrinha triste... Por mais miúda que fosse, ela apagava o sol, e o coração do rei se torturava.
Sentia saudades.
Não queria sentir.
Uma vez, ao apanhar um livro na estante, dois pontos de uma reticência cindida caíram bem dentro de seu olho direito, e deu o que fazer para poder tirá-los. Aquilo irritou profunda e definitivamente o soberano.
Foi então que ele decidiu que se caçassem aquelas criaturas que ganharam vida própria. Mandou abrir uma vala profunda o bastante para ali enterrar, e eternamente, as perigosas palavras de Sherazade. Enquanto isso se fazia, ordenou a todos na corte, sem exceções, que se procurassem as palavras da moça por todos os cantos. Para que nada restasse perdido, alertou o rei para os travessões que se enfiavam nas frestas dos pisos, para as ardilosíssimas cisões eventuais, para os pontos dispersos, as interjeições de espanto, as miudezas quase transparentes das entrelinhas e, em especial, para aquelas desagradáveis declarações de amor disfarçadas em metáforas coloridas.
Assim foi feito.
Ao término de uma semana, a limpeza estava concluída.
E não foi surpresa ver o jardim coberto por sacos e sacos das palavras de Sherazade.
Inquietas, elas se debatiam freneticamente, desejando escapar. Seu rumor ora se assemelhava à gritaria de um bando de maritacas em revoada, ora se tornava em um verdadeiro samba do crioulo doido. Primeiramente, o rei bem que havia pensado em separá-las por cor, depois por qualidade matérica, mas finalmente entendeu que só teria sucesso se as separasse por classe. Era preciso evitar qualquer tentativa de agrupamento sintático. Só assim nenhuma frase inteira poderia vir do nada puxar o pé do soberano numa madrugada fria ou assustá-lo ao se esconder atrás das portas.
O saco dos pontos de interrogação era o maior de todos. Coisa imensa e imensamente incômoda! Mandou com eles forrar a vala, o que, ademais, foi um alívio extremo, pois nos últimos tempos era fácil aquelas coisas serem encontradas e usadas como brinquedos por crianças, que infernizavam a vida dos adultos com saraivadas de perguntas difíceis. Verdadeira praga!
Depois foram lançados os adjetivos e os advérbios, esses trambolhos inúteis! Alguns tão doces, que as formigas começavam a rodear a área; outros tão perfumados, que as abelhas se achegavam sem parar; outros tão longos, que precisaram ser dobrados ou cortados. E havia deliciosos saquinhos de risadas, pacotinhos de suspiros, baciadas de ‘e se’.
E assim todas as palavras que Sherazade escrevera em mil e uma noites encontraram seu destino ingrato, tal e qual o de sua própria criadora.
De vez em quando chegava o boato de que alguém, passando sobre a vala depois transformada em um aparazível jardim, tinha escutado uma frase solta ou um eco arrevesado de uma afirmação qualquer.
Bobagem.
Um silêncio sem precedentes preenchia agora os aposentos, se derramava pelos pátios e parecia até mesmo calar as fontes.
Bobagem.
Um silêncio sem precedentes preenchia agora os aposentos, se derramava pelos pátios e parecia até mesmo calar as fontes.
Os anos se passaram e o sultão alcançou a fase extrema de sua vida. Nenhuma palavra, até onde era sabido, havia escapado da vala, e o mato se apossou completamente da sepultura de Sherazade, que de rosas e narcisos nunca mais soube. Outras tantas cabeças haviam sido cortadas, e o rei, que nunca encontrou a satisfação pessoal, foi-se entristecendo a olhos vistos, caindo mais depressa do que as tardes invernais. Até que um dia se foi, ele também.
Terminadas as celebrações fúnebres foi que encontraram, sob os travesseiros em seu leito, uma caixinha delicadamente cinzelada fechada à chave. Ali se comprimiam, em seu azul luzente, uma centena das inúteis criações de Sherazade: palavras de amor e cuidado, e carinho e afago, as mais belas, as mais doces, as mais ternas. E para cada uma delas, guardada com o mesmo cuidado, havia uma palavra do próprio rei que lhe fazia o par. Faltava apenas uma, que aquela ele não havia aprendido.
Querida Sherazade-Letícia,
ResponderExcluiré, sem dúvida alguma, um dos contos mais maravilhosos que já li... e é pra ler e reler. Lindo, lindo... gostaria demais de ter essas palavras guardadas num livro-caixinha... quem sabe, um livro com alguns de seus contos e alguns dos meus sonetos: abraço de palavras...!
Obrigada, querido, mesmo!
ResponderExcluirLembra do nosso projeto de contos?
Lembro sim! E toparia retomar, até pra que se amenize não apenas o caminho dos outros gauches mas também o nosso próprio... agora, tenho andado mais verso que prosa...
ResponderExcluirGostei mesmo foi da ideia do livro-caixinha! Quem sabe a gente consegue fazer alguma coisa concreta...
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