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(extratos do texto escrito para a exposição
Mestres Espanhóis -
Mestres Espanhóis -
Vitória, ES, agosto de 2011)
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Joan Miró. Litografia integrante do livro de Rafael Alberti
Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Miró. 1975.
O catalão Joan Miró (1893-1983), pintor, gravador, escultor e ceramista está entre os mais notáveis e férteis artistas do século XX. Na década de 30, após uma crise criativa, começa a explorar novas possibilidades expressivas a partir de técnicas diversas: aparecem as colagens tridimensionais – que apontarão o caminho para a escultura e, mais tarde ainda, para a cerâmica – e sobretudo ganham surpreendente força as artes gráficas (gravura e desenho). Miró, por seu espírito investigativo e inquieto, destemido no enfrentamento técnico que almeja sua melhor e mais adequada expressão estética, é sem dúvida um dos maiores artistas de seu século. Nesse processo, a gravura foi um de seus veículos expressivos mais eloquentes, aquele que forjou o resultado final de sua linguagem. Sobre isso, o artista, que produziu em sua vida cerca de mil gravuras, nos diz:
“A gravura tem sido um meio de expressão fundamental para mim. Deu-me espaço para a libertação, para a expansão, para a descoberta. Contudo, no início eu era prisioneiro de suas limitações, de suas regras, de suas ferramentas e receitas muito dependentes da tradição. Eu precisei resistir, superá-las, e então um vasto reino de possibilidades estendeu-se diante dos meus olhos e à mão... Pouco a pouco, eu consegui domar esse despotismo. Posso usar uma sovela ou um buril, mas igualmente meus dedos, minhas mãos, uma unha ou uma velha chave de fenda. Eu também consegui romper com o uso do papel convencional, e comecei a imprimir sobre os papéis mais estranhos que se pode imaginar”. [J. Dupin, in Miró Grabador, 1987]
A atenção de Miró volta-se para as artes gráficas no final da década de 20, a partir da frequentação de um círculo literário em Paris (Éluard, Breton), num momento em que o artista estava mais interessado em poesia que em pintura. De sua primeira ilustração para um livro, em 1927, até o fim de sua vida, ele produzirá cerca de 100 conjuntos de ilustrações literárias (entre as mais célebres: À toute épreuve, de Éluard (1947); Parler Seul, de Tzara (1950); Ubu-Rei, de A. Jarry (1966).
Na primeira metade da década de 70, Miró produz 21 litografias para o livro Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Mirò (1975), obra do poeta e dramaturgo espanhol Rafael Alberti (1902-99). No instante de sua execução, a técnica litográfica estava completamente dominada, vivida e transgredida, e o artista se via entregue aos improvisos e experimentações. Miró adorava comparar essa sua postura como artista com a de um “jardineiro”: aquele que cuida e experimenta para melhor criar.
As composições ainda têm aqui algo do lirismo sedutor da cor e do gesto que marcou sua produção dos anos 60. Contudo, em várias das Maravillas, o preto aparece como um signo decisivo, apanhando no voo o olhar do espectador, avançando para o primeiro plano, empurrando as notas de cor a planos secundários e as manchas suaves para mais longe, organizando assim a profundidade espacial. Os grafismos sugerem um código, uma linguagem a ser desvendada, como um hieróglifo ou um pictograma. Não são propriamente abstrações, assim como as improvisações do jardineiro Miró não são automáticas, fluido inestancável. As formas aqui são parte de uma construção calibrada e refletida, distanciadas do universo caótico dadaísta. No jardim de Miró, a realidade é reordenada, transfigurada por seus signos-códigos pessoais, e reapresentada ao espectador. São outras realidades, visões internas, não superficiais.
Outra Maravilla de Miró para o livro de R. Alberti (1975). Litografia
Assim como Miró parece recriar a linguagem com a forma gráfica, Rafael Alberti quer fazer pintura (que, aliás, foi sua primeira vocação) com a poesia. Ambos os artistas buscam um território comum entre poesia e pintura: meios diversos para uma mesma semântica. As litografias de Miró não são ilustração num sentido estrito de complemento visual de um texto, mas parte essencial da obra, sem a qual esta não se realiza. Em Alberti muitas vezes uma palavra que não existe semanticamente é capaz de se equiparar às formas visuais de Miró somente por seu conteúdo fonético, por seu efeito acústico. Lá e cá, abundam balbucios, interjeições, onomatopéias: todo um divertimento fônico colorido, um jardim de sonho, maravilha com variações plantada por jardineiro de talento.
“Aprendi [Miró] por meio de várias experiências o que significa fazer um livro, não apenas ilustrá-lo, o que é sempre secundário. Um livro deve ter a dignidade de uma escultura em mármore” (R. Margit, in Joan Miró: Selected Writings and Interviews, 1986).
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