sábado, 8 de maio de 2010

Ó

.
.
.

Às mães


       No Brasil são centenas as invocações marianas. Desde o período colonial, acorriam à Maria os homens, portugueses desterrados, desgarrados de suas famílias em andanças de desbravamento por este solo. Distantes de suas mães e esposas, oravam à Virgem por proteção, quem sabe buscando ainda a doçura maternal que haviam perdido de vista. Carregavam sua imagem em pequenos - por vezes pequeníssimos - oratórios portáteis e, uma vez assentados satisfatoriamente, tratavam logo de edificar à Senhora uma capelinha humilde, provisória, onde depositar sua imagem protetora: origem de muitas igrejas-matrizes de cidades do interior brasileiro.
       Entre as mulheres, uma das invocações de Maria mais populares, desde o início da colonização, é de Nossa Senhora da Expectação, também chamada Nossa Senhora do Ó. A razão de tal devoção feminina a essa figura é evidente: a necessidade de proteção divina na hora do parto em épocas em que esse processo natural constituía um claro risco de vida. Entravam em cena então as imagens da Virgem barrigudinha, mão sobre o ventre cheio, comuns desde o século XII na Espanha e em Portugal, mas cuja origem remonta ao século VII.



Nossa Senhora do Ó, ou da Expectação. Pedra calcária policromada.
De Portugal, séc. XIV. Lisboa, Museu das Janelas Verdes



       Num dos concílios eclesiásticos ocorridos em Toledo, na Espanha, no século VII, ficou determinada a fixação da data de 18 de dezembro para a celebração da festa da "Expectação do Parto da Beatíssima Virgem Maria". Sendo o natalício de Jesus celebrado em 25 de dezembro, a festa da expectação ocorria uma semana antes disso. Por ocasião dos festejos, recitavam-se as Antífonas maiores, que, em número de sete, iniciavam-se com a exclamação 'oh'.
       Aí, portanto, parece estar a origem dessa invocação mariana. No Brasil, o termo "da Expectação" devia parecer, junto ao povo, de difícil pronúncia, ou talvez longo demais. O fato é que o epíteto "do  Ó" foi o mais comum, e à Nossa Senhora do Ó aqui se dedicaram várias capelas e igrejas. Uma delas deu origem ao bairro paulistano da Freguesia do Ó. Outra, a de Sabará, é uma das relíquias da arte colonial mineira.
       Logo, contudo, rareram as imagens da Virgem grávida, condenada pela óbvia contradição do dogma da Conceição, segundo o qual é matéria de fé que a jovem Maria concebeu e deu à luz Jesus sem pecado, por obra do Espírito Santo, mantendo intacta sua virgindade. A Conceição  (conceptione - concepção) é, deste modo, aquela que concebeu sem pecado.
       Mais tarde, na segunda metade do século XIX, a Igreja decidiu que não apenas o Cristo, mas também a própria Maria fora concebida (por sua mãe, Ana) sem pecado, e esta é a Imaculada. Portanto, apenas no século XIX é que Maria passa a ser, além de "Conceição", "Imaculada".
       Todas essas determinações eclesiásticas evidentemente criaram confusões no instante da representação formal dessas imagens, e a Virgem barrigudinha sobreviveu apenas, e breve e infelizmente, no imaginário popular. Sobre o pitoresco e eufônico "Ó" que lhe dá nome, a origem não é menos controvertida. Certamente se liga à recitação das Antífonas maiores das vésperas natalinas, mas pode ainda ser um eco de um dos sermões do  Padre Antônio Vieira, intitulado justamente Sermão de Nossa Senhora do Ó, proferido na igreja da Ajuda em Salvador, em 1640. Neste sermão, o pitoresco se mostra pela aproximação da forma circular do ventre mariano à forma geométrica do círculo, símbolo da perfeição desde a antiguidade, a forma do globo terrestre, das esferas celestes, do Universo e, se Deus tivesse forma, diz Vieira, essa seria também a sua.




 
.
.
.

Um comentário:

  1. Muito interessantes essas informações. Quanta história, quanta riqueza, basta garimpá-las. Grande abraço.

    ResponderExcluir