sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Serenissima

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Letícia de Andrade. Veneza em um dia de chuva. 1991. Fotografia


As duas fotografias que posto aqui foram feitas na minha primeira viagem a Veneza, em 1991.
Que c'etait triste Venise...
Chovia muito naqueles dias da estadia e não me deixavam expor assim por qualquer coisa a maravilhosa Nikkon à água... Não por qualquer imagem que me parecesse sedutora. E eram tantas... Reclamava-se de tudo: da umidade, do frio, do cheiro forte dos canais - "Venezia puzza!" -, do movimento dos turistas e, sobretudo, do maldito mapa que não era exato e podia fazer com que nos perdêssemos e fôssemos parar em algum "beco escuro e fedido". Num dos enganos induzidos pelo mapa, fomos dar numa pracinha diante da casa do compositor Vivaldi. Ao ver a cena, pensei logo no segundo movimento do Inverno das Quatro Estações: a chuva. Queria ter podido parar um instante e ficar ali, saboreando a vista, reunindo-a a esses acenos da minha memória. Mas havia pressa...


Aqui uma interpretação (James Last) de Vivaldi, La pioggia, L'inverno, Le quattro stagioni.
(aviso que o vídeo é cafoninha e que eu gostaria mesmo era de postar uma interpretação pelo violino de Anne-Sophie Mutter, mas não encontrei. Mi dispiace...)


Sim, há muitos clichês nisto que escrevo agora. 'Só faltam as máscaras', vocês irão pensar. Não, não faltam. Tive a chance de fotografar às escondidas (do proprietário da Nikkon e da dona da loja à porta) uma vitrine de máscaras que mais parecia um sonho. A luz de dentro era dourada, quente, e fazia um contraponto extremamente reconfortante com o cinza de fora.



Letícia de Andrade. Máscaras numa vitrine em Veneza. Fotografia, 1991.


O fato é que, por inúmeras e variadas razões - em especial a de que 'Veneza era triste demais' -, a primeira vez que vi Veneza eu quase não pude ver Veneza.

Muitos anos mais tarde, voltei à Serenissima numa visita rápida durante o período sanduíche do meu doutorado na Itália. Sem o engenheiro que lia os mapas, me perdi bonito, e muito, e tanto, que foi uma aventura inesquecível... Não havia mais Nikkon e, na verdade, nem qualquer outra máquina fotográfica (porque também não tinha dinheiro para comprar uma). Sei que as erranças pelos becos venezianos me presentearam com as cenas mais surpreendentes. Andei sem preocupação nem rumo certo. Ia pra onde meu olhar e minha curiosidade levavam.

Numa livraria perto da universidade encontrei o catálogo de uma exposição antiga do Canova, de que tanto tinha precisado um tempo antes... Estava na vitrine, me esperando. Não reencontrei a pracinha em que ficava a casa de Vivaldi, como gostaria, mas conheci várias outras, e numa delas até pude me sentar. Dali, acompanhei o namoro e os voos de um casal de pombos, prestei atenção no engraçado sotaque vêneto e, sem chuva e sem pressa, vi a tarde ir-se acabando, alongando indefinidamente as sombras dos passantes, pintando de dourado as águas aqui e ali: ganhei olhos de Guardi, e de Ticiano e de Giorgione e de Bellini...

E pensei nas belezas que a gente não vê porque não sabe que existem ou porque não tem vontade. Ou simplesmente porque tem pressa. Belezas que não estão nos roteiros, não estão nos mapas. Lembrei de um dia já bem distante em que, voltando de carona com uma amiga de Barão Geraldo para Campinas, o combustível do carro acabou e nós ficamos na estrada. Fiquei muito irritada de ter que sair pra procurar um posto. Estava quente e eu tinha vontade mesmo era de xingar. Ela percebeu meu estado de espírito e de repente me disse sorrindo, calma que era, e mais velha, mais vivida: "Pense que se nós não tivéssemos ficado sem gasolina, quando é que você teria a oportunidade de ver uma árvore linda dessas?", e me mostrou um flamboyant dos mais exuberantes. No entanto, naquela hora eu queria mais era que a árvore chamejante fosse fulminada. E foi ali, anos depois, na pitoresca pracinha de Veneza naquele fim de tarde de primavera, que eu entendi de fato o que quis dizer minha sábia amiga. Embora perdida, eu estava muito muito, mas muito serena. Estava feliz.










2 comentários:

  1. Letícia, nem tenho palavras para descrever o seu texto, mas posso dizer que está certíssima! A beleza se perde na pressa e qualquer pressa abala a poesia da vida. E poesia você tem muita!!!!1
    Por isso que você é mara!!!

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  2. É só prestar atenção. E a arte nos torna mais sensíveis, com certeza. Beijinho, flor. Você é especial.

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