segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A gust of wind

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J. Singer Sargent. A gust of wind (Uma rajada de vento)
 c.1886-1887. Óleo sobre tela; 61,6x38,1cm. Coleção privada




"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento..."


(Mário Quintana)


domingo, 28 de novembro de 2010

Melancholie

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Este pequeno retrato do Quattrocento italiano traz um universo inteiro codificado de modo muito sutil; mostra quantos mundos e histórias podem estar escondidos atrás de uma única imagem e nós nem desconfiávamos



Antonio Puccio, il Pisanello. Retrato de uma princesa da casa D'Este. 1436-438.
Têmpera sobre madeira; 43x30cm. Paris, Louvre


Antonio Puccio, o Pisanello, foi pintor e medalhista, um mestre do estilo gótico internacional, importantíssimo para a criação do modelo de medalha heráldica empregado no Renascimento. Nasceu provavelmente em Pisa – daí o apelido “Pisanello” (“Pisaninho”). Trabalhou em Verona, em Mântua, em Veneza, com Gentile da Fabriano, e em Roma. Muito de sua obra em afresco foi destruída. As obras remanescentes mostram uma inclinação para a interpretação do detalhe naturalista, enquanto tende a estilizar sutilmente os traços dos rostos.

Este retrato é uma das pequenas jóias da história da arte. Gera certo estranhamento, pelo tratamento pictórico muito linear, recortado, seco, e pela própria aparência da retratada, com esse penteado de testa raspada, à moda da época; o coque volumoso, envolvido por fitas; o rosto sem atrativos, nada bonito, de queixo para dentro e testa alta, embora seja doce e sereno. Esse perfil é asperamente recortado contra o fundo escuro de arbusto que lhe destaca de modo muito eficaz – propositadamente escolhido pelo pintor. É um dos primeiros retratos independentes em que o retratado aparece de perfil, sob influência das medalhas que Pisanello cunhava para casas nobres italianas. O estilo linear intrincado, com a delicada trama de arabescos é típico do gótico internacional.

Nos arbustos, muitas flores e borboletas coloridas criam uma natureza-morta à parte sob o aspecto de uma tapeçaria, ou de um tapete, que é uma recriação do jardim, como já vimos noutro post. Essa moldura delicada associada ao rosto doce da modelo cria uma atmosfera de encanto, que atrai o espectador. Mas não é só. É a análise botânica da imagem que vai permitir a identificação da modelo, num jogo adorado pelos historiadores da arte.


 


A massa verde foi identificada com um arbusto de zimbro, o “ginevro-ginepro”, em italiano, um arbusto sempre-verde, da família dos ciprestes. Um raminho da mesma planta é colocado na manga do vestido da moça. Essa é, sem dúvida, uma alusão ao nome da personagem: Ginevra. Leonardo da Vinci também usará mais tarde a representação da mesma planta para identificar sua retratada Ginevra Benci, num quadro da NationalGallery de Londres. Depois, ainda no vestido, figura um vaso de duas alças de onde sai uma corrente, e este é o símbolo de uma família nobre de Ferrara, os d´Este.




A precisa identificação das flores presentes no fundo e de seus significados simbólicos permitiu a confirmação da identidade da retratada. As borboletas são emblemas da alma desde a antiguidade; o emprego de flores cor-de-rosa na época fazia alusão ao matrimônio, o que também é indicado pela corrente no vaso. As aquilegie representam tristeza e morte: teriam feito alusão às dores da Virgem Maria durante a idade Média e, depois, no Renascimento, ganharam uma conotação funerária. A etimologia da palavra remete ao francês “ancholie”, diretamente ligado à evolução da palavra “melancholie”.


 


A aquilegia-ancholie-columbine


De fato, houve uma Ginevra, princesa da família d´Este, que se casou muito jovem com Sigismondo Malatesta, aos 14 anos, e morreu envenenada, segundo dizem, depois de muita infelicidade, pelo próprio marido, que queria desposar outra mulher (porém, há quem afirme que ele a envenenou por ciúme). Tudo isso sugere ser um retrato póstumo, e a datação aproximada da pintura foi colocada em torno de 1440-41, sendo 1440 o ano da morte da princesa, que coincide com a estadia de Pisanello em Ferrara.




sábado, 27 de novembro de 2010

Palavras

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A brilhante poetisa em brilhante tradução...
(ou melhor, como aqui apresento, a brilhante tradução da brilhante poetisa)


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Letícia de Andrade. Bucranium. Fotografia. 2009.




 Palavras
 (Sylvia Plath. Tradução: Ana Cristina César)



Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha


Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro


Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.



Words
(Sylvia Plath)


Axes
After whose stroke the wood rings,
And the echoes!
Echoes travelling
Off from the center like horses.

The sap
Wells like tears, like the
Water striving
To re-estabilish its mirror
Over the rock

That drops and turns,
A white skull,
Eaten by weedy greens
Years later I
Encounter them on the road —

Words dry and riderless,
The indefatigable hoof-taps.
While
From the bottom of the pool, fixed stars
Govern a life.

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Aos náufragos renitentes...

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... porém DESTEMIDOS
- que navegar é preciso e naufragar, inevitável
(mas viver é imperativo)




Caspar David Friedrich. Naufrágio ao luar. c.1825.
Óleo sobre tela; 31,3x42,5cm. Berlim, Nationalgalerie


 
Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

 

(Mário Quintana, A carta)
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Perto

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H. de Toulouse-Lautrec. Na cama - O beijo.




Se da Amada estás ausente
como o Oriente do Ocidente,
o coração transpõe todo o deserto;
só, por toda a parte acha o seu caminho certo.
Para quem ama, Bagdá é aqui perto.




Johann Wolfgang von Goethe, in Divã Ocidental-Oriental
(tradução: Paulo Quintela)




Sobre a etimologia de 'perto', diz o Houaiss: "segundo Meyer Lübke, de *apreto com afér. de metátese, regr. de apertar e, este, do lat.tar. appectoráre 'comprimir alguém ou algo contra o peito'"








quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quando o verão chegou





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.J. Singer Sargent. Paisagem perto da Broadway. 1885.
Óleo sobre tela; 45x61cm. Coleção privada



 

QUANDO VENNE L'ESTATE
(Bruna dell'Agnese)



Per un cancello piccolo, quasi
una fessura intagliata in un tronco,
passò l'estate.
Nessuna, fra le molte persone
assiepate ai lati della strada,
fu ben certa di averla veduta
benchè ognuno fosse da mesi all'erta.
Fino a che, sparpagliando verde su verde
fra foglia e foglia,
e immettendo in ciascun ramo
una gran voglia di mutarsi
in flautato strumento, fu dappertutto,
come un ragazzo felice e disordinato
che fischiettasse nel vento.




QUANDO O VERÃO CHEGOU


Por um pequeno portão,
quase uma fresta recortada num tronco
o verão passou.
Ninguém, entre as muitas pessoas
aglomeradas nos lados da rua
teve certeza de tê-lo visto
ainda que por meses todos tenham estado atentos.
Até que, espalhando verde sobre verde
Entre folha e folha,
e insuflando em cada ramo
um grande desejo de se transformar
em flautado instrumento, se encontrou por toda parte,
como um rapaz feliz e bagunceiro
que assobiasse no vento

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domingo, 21 de novembro de 2010

Granada

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'Granada' é palavra espanhola para a nossa 'romã', cujo nome científico (latim) é Punica Granatum.



A romã-granada, fechada

 
Embora também nomeie uma poderosa arma de guerra (esqueçamos isso), 'granada' é para mim uma palavra carregada das mais agradáveis evocações. Além da evocação das habituais obras-de-arte, há outras cores e texturas, aromas, sons, paisagens...

O nome punica vem dos fenícios, que viveram na área do atual Líbano e cultivaram esta planta, difundindo-a pelo Mediterrâneo na antiguidade. Já o adjetivo granatum refere-se aos muitos 'grãos' que o fruto dessa planta apresenta. É dessa denominação latina da espécie que veio a palavra 'granada', presente ainda hoje no nome da fruta em várias línguas além do espanhol: grenadier (francês), pomegranate (inglês); melagrana melograno (italiano); Granatapfel (alemão). Na composição dos três últimos vocábulos existe em comum, além disso, a presença de outra fruta, a maçã, donde a romã seria então nessas línguas uma espécie de maçã de muitas sementes.



granatum: de muitos grãos | sementes


Na língua portuguesa, a fruta 'romã' foi nomeada por outro caminho; um caminho de origem egípcia e semítica na raiz mnr. Desta forma, por exemplo, 'romã' é algo como rimmôn em hebraico e rummân em árabe.

Essa fruta globular e perfumada, de casca cor de coral ou salmão e polpa de um vermelho profundo, desde a antiguidade adquiriu significados simbólicos os mais variados. Primeiramente, vem ligada à deusa fenícia Astarte e, mais tarde, ao mito grego de Perséfone (Prosérpina),  a filha de Deméter (Ceres) raptada por Hades e levada para o mundo inferior. Ao comer alguns grãos de uma romã no Hades, a filha de Ceres se condenou  a viver ali eternamente. Num acordo feito por intercessão de Zeus, Hades concedeu que  Perséfone vivesse a metade de cada ano na terra, ao lado da mãe, ocasião em que a natureza germinava e florescia. A passagem da deusa pela terra trazia então a primavera, ao passo que os seis meses de confinamento no Hades correspondiam aos tempos da terra infértil. Por essa razão, a romã desde bem cedo esteve ligada aos aspectos de fecundidade e fertilidade.



Dante Gabriel Rossetti. Perséfone. 1877.
óleo sobre tela; 46 x22". Londres, coleção privada



Na Roma antiga, a romã segura por Juno era símbolo do casamento, e a árvore de flores vermelhas e perfumadas vinculava-se à própria ideia do amor e do matrimônio que gerava filhos. Por isso as noivas levavam grinaldas trançadas com essas flores.


a flor estrelada da romãzeira

O cristianismo veio ampliar o leque de significados simbólicos dessa fruta, que frequentemente apareceu na companhia de Maria e do Menino Jesus:  se aparece nas mãos do Menino, que parece brincar com a fruta, simboliza sua ressurreição; se é fruto de uma árvore sob a qual a Virgem se abriga, conota sua castidade.




Botticelli. Madonna della melagrana. c.1487.
Têmpera sobre madeira; d 143cm. Florença, Galleria degli Uffizi





Às vezes a própria Virgem pode vir segurando a romã:



Veit Stoss. Madonna e Menino com Romã. 1500-1505.
Gravura metal; 21,7x16,3cm. Munique, Staatliche Graphische Sammlung



A mesma fruta nomeou - tradicionalmente se diz - a cidade andaluz de Granada, na Espanha, e discretamente participa do escudo, do brasão e da bandeira daquela localidade.






Da bela Granada, cidade espanhola que foi o último bastião dos mouros no país, indubitavel e inevitavelmente nos chegam outras mil evocações de sabor extravagante.


Vista de Granada com o Alhambra em primeiro plano e a Sierra Nevada ao fundo.


Memória de amplas tramas de arabescos e arcos pontiagudos, e de pátios de fontes frescas, e de luz vazada por abóbadas estreladas.


Interior do Alhambra, Granada, Espanha. Século XIV.


E, por, fim, memória de sons de guitarras flamengas e canções como a de Augustín Lara, Granada (1932):


Granada, interpretada por Djavan


Granada, tierra soñada por mí |
mi cantar se vuelve gitano cuando es para tí |
mi cantar hecho de fantasía |
mi cantar flor de melancolía |
que yo te vengo a dar. |
Granada, |
tierra ensangrentada |
en tardes de toros. |
Mujer que conserva el embrujo |
de los ojos moros; | 
te sueño rebelde y gitana | cubierta de flores |
y beso tu boca de grana |
jugosa manzana | que me habla de amores.



Granada, por Paco de Lucia






quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Mme Récamier - tempo, história e memória

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 J.-L. David. Madame Récamier. 1800. Óleo s/ tela, 174 x 244 cm. Inacabado. Paris, Museu do Louvre


Corre o ano de 1800 quando o artista francês Jacques-Louis David (1757-1825) dá início à pintura do retrato de Julie Bernard, a Madame Récamier. Nele, David apresenta-nos uma jovem senhora estendida sobre um canapé à antiga: os pequeninos pés descalços, o vestido leve e branco escorregando até o chão. A pose é aquela que bem ilustra o tema da abandonada, muito freqüente na literatura do final do século XVIII. Na tela, o espaço é amplo e quase esvaziado: além do móvel, apenas um escabelo e a longa luminária, que responde à horizontal do canapé. Há, na imagem, uma concisão compositiva, um laconismo que se manifesta naquele cômodo amplo e quase desabitado. Enquanto o divã é ligeiramente deslocado para a frente, em direção ao observador, a parede do fundo sofre um deslocamento contrário. Assim, cria-se um espaço algo fantástico, que parece abrir-se para fora da tela e até o infinito, acentuando, desta forma, o vazio que já se mostra. Mas, além disso, existe a evocação de um passado distante, que é revisitado, reinterpretado, num desejo de fazer reviver um tempo grandioso e exemplar: os móveis e objetos antiquisantes, o vestido que evoca os chitons, o penteado… Neste retrato de Julie, subsiste uma certa lembrança de ninfas preguiçosas e de musas delicadas.
 
Esse quadro, situado dentro do período que se chamou ‘neoclássico’, é um entre centenas de retratos femininos do final do século XVIII e do início do XIX em que as figuras vêm colocadas languidamente sobre um divã ou então mostram seus atributos e dons específicos enquanto literatas ou musicistas, por exemplo, através da apresentação de um objeto qualquer que os indiquem: o livro, o instrumento musical. Essas mulheres ainda podem deixar-se retratar como uma divindade do panteão da mitologia clássica ou como uma figura destacada - e certamente virtuosa - da história romana. Elas formam, juntas, um enorme contingente de Afrodites, de Calíopes, de Safos e Cornélias. Em tais retratos a feminilidade raramente participa ou comunica as expressões de um erotismo evidente. As mulheres encarnam ideais, conceitos, exemplos que se pretendem educadores do homem. Há que se lembrar que o neoclassicismo veste as mulheres, e se elas não tomam parte ativa nas representações das grandes cenas de história, elas têm lá o seu papel importante, por mais abstrato que seja, no momento crucial da Revolução: não estão as mulheres, a essa época, a dar corpo, forma plástica, aos mais sublimes ideais revolucionários? Figuras femininas são a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Feminina é a Pátria, é Marianne.



Assim, a Madame Récamier, retrato de David, é uma obra que, ao mesmo tempo em que busca um resgate que se poderia dizer ‘científico’, no sentido de arqueológico e filológico, do passado - através da inserção de objetos e de atitudes nele inspirados - no entanto já não o tem por inteiro. O passado é, antes, inspiração, referência distante. É a característica do retrato - aquilo que trata, portanto, da apreensão dos traços físicos e psicológicos de uma determinada personalidade, nomeada e definida - o que faz datar a obra, situá-la num tempo preciso dentro da história.


 

R. Magritte. Perspectiva I, Madame Récamier de David, 1950-1951. Óleo s tela,  24 ½” x 32 ¼”. Coleção privada.



Um século e meio depois da pintura de David - que permaneceu inacabada -, um artista belga a retoma: René Magritte (1898-1967). Primeiramente, acontece a recriação em suporte bidimensional, e Magritte oferece-nos uma Perspectiva. Madame Récamier de David, título dado à tela. Nesta imagem, retomados todos os dados cênicos, apenas a bela personagem vem substituída por um esquife dobrado em ângulo reto, refazendo a posição do corpo que o artista neoclássico pintara. Saindo por debaixo do ataúde, um pedaço do tecido branco escorre até o chão: lembrança imprecisa e inanimada da belle Juliette. Magritte trabalha a persistência da memória da personagem justamente pela acentuação do vazio, da não-presença.


É evidente, ainda, que Magritte está interessado no tom de necrofilia que parece residir no retrato de Madame Récamier de David. Muito já foi dito a propósito do aspecto fúnebre transmitido pela célebre tela neoclássica, e, nesta, tal aspecto poderia vir, talvez, tanto da relação da figura com o espaço abstrato e vazio que a circunda, quanto da relação da figura com os objetos. Poderia vir, também, da tensão resultante da apresentação simultânea de um tratamento descritivo-linear das formas (percebido ainda que a obra não tenha sido concluída), criador de uma realidade plausível - e até super-acabada -, e a estaticidade da pose e o inacabamento do fundo. O aspecto de descrição que se apresenta em David é acentuado por Magritte através da escolha formal deste último: domina, outra vez e ainda mais marcadamente, a linha que separa as superfícies, impedindo a fusão das figuras no espaço. Tal linearidade igualmente contribui para o desconforto do espectador e, como já se pressentia em David, faz pensar numa transfiguração da realidade que chamava à lembrança um certo surrealismo. Quanto aos objetos, se, em David, eles já ganhavam em presença e significado - por causa de sua relação com o espaço -, em Magritte, de modo similar, isso se mostra e se intensifica; e não deve ter havido pintor na História da Arte até então para quem os objetos tiveram maior importância.


R. Magritte. Madame Récamier. Escultura, 1967


No ano de 1967, Magritte cria uma segunda obra a partir da pintura davidiana: Madame Récamier. Desta vez o meio é a escultura, que ele realiza em bronze. Eis agora a materialização da imagem pintada dezesseis anos antes. Eis o objeto de fato. Como nos museus de cera, destinados a preservar a memória através de uma galeria de figuras tridimensionais, Magritte reforça em nós a recordação daquela figura feminina, paradoxalmente ausente, aproximando-se mais ou menos da materialidade verossímil dos objetos. Ali, irreal é o tecido - o fragmento que, então, estaria mais próximo da figura humana -, revelador não da intencionalidade mimética - que pode estar presente no restante do conjunto - mas de uma vontade de fixação no tempo, de eternização. Recriar, construindo efetivamente a cena no espaço em três dimensões é como recuperá-la com mais intensidade, conceder-lhe vida e torná-la mais próxima de nós. No entanto, a figura de Julie Bernard vem substituída por uma idéia que nos fala do contrário: da morte e do vazio. O tempo comporta, pois, a morte; mas Julie continua a fazer-se presente através daquilo que a escultura pode evocá-la: do nome, que é seu título, à recriação da ambientação davidiana. Não há, com Magritte, um rompimento radical com a fonte primeira, e a História transmite-se, perpetua-se, na escolha que o artista faz de uma determinada pintura que representa, ela própria, uma personagem identificada e precisa: um retrato. E o artista repete: Madame Récamier de David. Mais do que uma figura feminina qualquer do período da Revolução, Magritte seleciona uma personalidade, e esta, que vai-se debilitando aos nossos olhos na ausência física da figura, no entanto ainda não fenece. Memória enfraquecida, o objeto concreto necessita da palavra. Deixando de lado os aspectos passíveis das mais variadas e fantasiosas interpretações da relação entre as três obras, pode-se dizer que essas últimas são, duas vezes, rememoração do passado: lembrança de Julie, lembrança de David: souvenirs de 1800.





Anselm Kiefer. As mulheres da revolução. 1992. Chumbo. Col Muhling, Alemanha

Finalmente, chega-se à obra do artista alemão Anselm Kiefer (1945): uma instalação datada de 1992. Nela, treze leitos executados em chumbo estão dispostos ao redor de um cômodo em cujas paredes se vêem pequenas tiras de papel onde estão escritos cerca de vinte nomes de mulheres, nomes reais ou ficitícios. Na parede de fundo, o título genérico dado pelo artista: As mulheres da Revolução.

 
As camas estão vazias, e a única referência a qualquer mulher - da Revolução ou não - são nomes. Apenas palavras. Abstrações em carvão sobre papel, leves tiras contrastando com o chumbo dos leitos. Estas vêm em seqüência, criando uma fita que corre por toda a sala sem que haja correspondência entre um nome e um leito, mesmo porque há mais nomes do que leitos. Estão ali, entre outras, lado a lado e indistintamente, a nossa já conhecida Madame Récamier e sua amiga literata Madame de Stäel, Charlotte Corday - a assassina de Marat -, uma pequena ironia chamada “Madame Duchesse”- que faz lembrar a ‘Madame Mère, título criado para a mãe de Napoleão Bonaparte -, e Cornélia, a virtuosa personagem romana referida por Plutarco e que foi um dos modelos de virtude eleito na História pelas próprias mulheres e pelos artistas do período neoclássico. Esses nomes ainda são memória, mas memória confusa e corrompida, colocando a assassina ao lado da virtuosa, embaralhando Roma e a Revolução Francesa. Que mulheres foram essas já não se sabe bem. As palavras sobre os papéis frágeis e sujos são um esforço para manter a lembrança daquilo que, vivíssimo em David, já se diluía, entretanto, em Magritte. E o que se apagava sutilmente em Magritte tende agora a decompor-se. Desta maneira, a ausência da referência física a essas mulheres coincide com a perda da referência histórica.


Despovoados estão os leitos, mas eles recebem água empoçada, areia, pedras, detritos… como se tivessem sido longamente expostos ao tempo - o tempo físico, natural, com toda a sua capacidade de degradação. No entanto, as camas são emblema daquilo que ruiu por causa da exposição a um outro tempo: aquele cronológico, engendrado pela História. Elas podem mostrar ainda um caminho de volta a Magritte e a David naquilo que suas obras têm de fúnebre. São camas vazias, petrificadas e multiplicadas. São como lajes que encerram e sepultam definitivamente, com seu peso, uma legião inteira de beldades graciosas em seus falsos chitons. Acima, como num monumento aos mortos, a lista de nomes tem o efeito de um epitáfio conjunto, anulando a individualidade de cada personagem. E o monumento quer sempre perpetuar a lembrança do que está irremediavelmente perdido. As camas, nesta obra de Kiefer, são só o que permanece e o que pode permanecer mais um pouco: isto é o que nos promete o chumbo. Sua destruição material, símbolo do apagamento da memória dado pelo tempo, é não tanto a tentativa de regeneração crítica de um passado que, em Kiefer, nunca é arbitrariamente escolhido, mas é, principalmente, simples constatação. Constatação desamparada, que não se faz sem melancolia.


E, deste ponto, poderíamos retornar a 1800 e até retroceder um pouco para rever, na segunda metade do século XVIII, o discurso sobre a ruína, tal como fizera, a título de exemplo, o pintor Hubert Robert (1733-1808), contemporâneo de David. As mulheres da Revolução, de Kiefer, traz uma metáfora mais sofisticada do mesmo sentimento de Robert no que diz respeito à crueldade da passagem do tempo e, inevitavelmente, da impotência da condição humana. De David a Magritte, de Magritte a Kiefer, a ‘perspectiva’ - para citar a palavra utilizada pelo artista belga - é única: é o tempo que aniquila o homem, suas obras, sua memória. Num crescendo, o tom dos discursos dessas obras é a resposta melancólica trazida pela reflexão sobre a fragilidade do homem diante do tempo. Como acontece nas paisagens setecentescas com ruínas, tanto mais atraente é o discurso quanto mais ele pode indicar a destruição e a ausência, e, ao mesmo tempo, permitir o reconhecimento, fragmentado e portanto doloroso, do que veio antes, do que era, do que foi. E tanto mais atraente será quanto mais abstrato for o causador da destruição. Assim, ao final do percurso, se as tiras encardidas, com os nomes de muitas não-sei-quem, falam da angústia diante do esquecimento, elas revelam, ainda, uma grande ironia: a da História, que constrói aquilo mesmo que a destrói. Desta forma, talvez seja pertinente lembrar as palavras de D. Diderot (1713-1784) a propósito da contemplação das ruínas: “Tout s’anéantit, tout périt, tout passe. Il n’y a que le monde qui reste. Il n’y a que le temps qui dure." [Tudo se aniquila, tudo perece, tudo passa. Só o mundo permanece. Só o tempo dura.]
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terça-feira, 2 de novembro de 2010

E por falar em flores (pra variar)...






Piet  Mondrian. Anêmonas num vaso. c.1906.
óleo sobre tela; 28,9x21,6cm. coleção privada
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Eis o chamado  "Dueto das flores", da opera Lakmé (1883), de Léo Delibes, com libretto de Edmond Gondinet e Philippe Gille.








Sous le dôme épais où le blanc jasmin
A la rose s'assemble
Sur la rive en fleurs riant au matin
Viens, descendons ensemble
Doucement glissons
De son flot charmant
Suivons le courant fuyant
Dans l'onde frémissante
D'une main nonchalante
Viens, gagnons le bord,
Où la source dort et
L'oiseau, l'oiseau chante.
Sous le dôme épais ou le blanc jasmin,
Ah! descendons
Ensemble!