sábado, 5 de junho de 2010

Joanino-junina

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 Alberto da Veiga Guignard. São João.



O pequeno João Batista morava em Minas.
Morava na roça, nas bandeirolas coloridas
erguidas em mastros adornados de fitas
e flores de pano estampado de flor.
Era a criança festeira, brincalhona e barulhenta.
Tinha traços doces, cabelos negros, olhos vivos.
Fazia balão-galinha
pra soltar na noite fria com seus amigos.
E seus amigos, só os seus, eram uma centena...
E fazia balão multicor
pra vestir as estrelas de coral, amarelo e azul.
E atiçava as brasas da fogueira,
que soprava só pra ver se espalharem
que nem outras estrelas.
(miríades de estrelas ele via nascer todos os anos em junho)
E inflamava a ponta de uma vareta qualquer
pra desenhar uns carneirinhos no quadro-negro do ar
até se cansar.
E se encantava com uma prenda mixuruca - 
conquista suada na barraquinha das argolas -
(encantava-se com pouco, essa criança).
Adorava o barulho seco dos cinco ou seis saiotes das moças quadrilhando.
E saía todo feliz dançando atrás delas,
e morrendo de rir da cobra e da chuva.
Nem sonhava o fim dos tempos,
como outro João sonhou.


Já tinham me dito que ele ainda morava em Minas.

 

Sei que outro o dia o vi, por acaso,
em alto e abandonado mastro,
numa encruzilhada poeirenta de agosto,
chão de terra vermelha,
esquecido sobre o estandarte fustigado pelo vento
daquele meio-dia árido,
lento.
Estava ali, desbotado, tristonho,
o rosto sujo trespassado pelo tempo
em incontáveis furos. E rasgos.
Desfigurado.
Mudo.
Só.

Foi Salomé?
Foi o deserto interminável?
Foi o interminável deserto, João?


Mas eu parti sem resposta,
tentando apanhar no remoinho de vento e pó,
entre miolos de uns fuxicos descorados
e notas puídas de um acordeão,
os restos do meu coração retalhado
de saudade.



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2 comentários:

  1. Foi o deserto? Foi o tempo? Foi o fogo? Ou presente, que mal apreendemos, e já é passado?
    Tudo passa, e retorna em arte.

    Belo texto, Letícia, fotos surpreendentes. Grande abraço.

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  2. Eu acho que foi mesmo o deserto, que é o mais cruel, o mais terrível, esse do abandono, que também é o da negação das palavras.

    Abraços, Fernando

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