sexta-feira, 19 de março de 2010

Memento mori

.
.
.
Enquanto o talentoso Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) se encantava com os aspectos colorísticos e plásticos de uma cesta repleta de frutos, entre os séculos XVI e XVII, os teóricos da arte oficializavam a hierarquia de temas pictóricos, minimizando o valor dos arranjos de flores e frutas com a alegação de que não traziam o mesmo acréscimo ao ser humano quanto trazia uma alegoria moral ou uma pintura de história. Em suma, não haveria ‘lição’ a ser ensinada por essas imagens, além de sugerirem um quase sempre condenável prazer dos sentidos.



Caravaggio. Cesta de frutas. 1597. Óleo sobre telat; 31 x 97cm. Milão, Pinacoteca Ambrosiana


Com as mudanças na arte preconizadas pela Igreja Católica contrarreformada - que combatia então o avanço do protestantismo e necessitava fazer propaganda por meio da arte –, as pinturas mais simples passaram a ser revestidas de sentido alegórico e metafórico. Isso atinge também esse gênero que vinha lentamente se afirmando, contra as pregações acadêmicas, e que é exemplo de domínio do desenho e virtuosismo do pincel.

Portanto, em especial no mundo católico as naturezas-mortas vão se cobrir de significados que exigem decifração, entendimento. Frutas e flores, ou objetos como copos de água ou jarros de vidro vão falar sobre virtudes e vícios, vão qualificar as lições sagradas, muitas vezes feitas da justaposição de substantivos abstratos: a romã, por exemplo, fala da Ressurreição; o pêssego, da Verdade; as moedas, da Vaidade; o lírio, da Pureza, e assim por diante.

A propósito da Vaidade, outra questão é colocada no âmbito das naturezas-mortas simbólicas, sobretudo quando essas, além dos alimentos, apresentam outros objetos (normalmente de explícita referência a um dos cinco sentidos), tais como instrumentos musicais, espelhos, jóias, moedas, bolsas, coroas, cetros, velas, taças, etc. Uma interpretação bastante comum desse gênero de pintura é aquela que as identifica com uma mensagem de cunho moral a partir da idéia de vanitas. ‘Vanitas’ significa ‘vazio’: o vazio do que é efêmero, das coisas terrenas; e é o vocábulo latino que, no português, está tanto na origem do substantivo ‘vaidade’ quanto na do adjetivo ‘vão’. É possível, assim, entender a maior parte das naturezas-mortas não apenas como demonstração de virtuosismo artístico, mas como alegorias morais, como mensagens que lembram ao homem a passagem do tempo e, sobretudo, a certeza da morte, que tudo aniquila (para o historiador E. H. Gombrich, aliás, toda natureza-morta seria vanitas). O alimento que perde o viço, a caça abatida, as flores cortadas são lembretes de que a vida é um estado transitório. São memento mori: lembrança da morte, e os elementos mais evidentemente relacionados ao aspecto da transitoriedade da vida e à passagem do tempo são os crânios, as ampulhetas, os insetos que rondam.


Jacques de Gheyn, o velho. Vanitas still life. 1603.
Óleo sobre madeira; 82,6x54cm. NY, Metropolitan Museum


B. van der Ast. Cesta de frutas. c1625.
Óleo sobre madeira, 14x20cm. Berlim, Staatliche Museen


Os objetos que remetem à vaidade, à soberba, ao luxo colocariam a mesma lição: não se apegar à riqueza, ao poder, aos aspectos materiais e fúteis, porque estes não apenas podem aludir a um estado transitório, instável, efêmero como a própria vida, mas igualmente porque não terão serventia àquele que já exalou o último sopro. Porque tudo que é matéria, que é corpo, perecerá. São imagens que de forma mais ou menos direta exortariam ao cultivo do espírito em detrimento de valores terrenos. Imagens, porém, que ao nos fascinar pela habilidade mimética da interpretação da realidade, funcionam, ambiguamente, como uma exaltação mal disfarçada de tudo o que tentam negar.

Pieter Boel. Vanitas. 1663. óelo sobre tela; 207 x 260 cm. Lille, Musée des Beaux-Arts

.
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário