segunda-feira, 25 de julho de 2011

Maravillas en el jardín

.
.
(extratos do texto escrito para a exposição 
Mestres Espanhóis
Vitória, ES, agosto de 2011)


.
Joan Miró. Litografia integrante do livro de Rafael Alberti 
Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Miró. 1975.



O catalão Joan Miró (1893-1983), pintor, gravador, escultor e ceramista está entre os mais notáveis e férteis artistas do século XX. Na década de 30, após uma crise criativa, começa a explorar novas possibilidades expressivas a partir de técnicas diversas: aparecem as colagens tridimensionais – que apontarão o caminho para a escultura e, mais tarde ainda, para a cerâmica – e sobretudo ganham surpreendente força as artes gráficas (gravura e desenho). Miró, por seu espírito investigativo e inquieto, destemido no enfrentamento técnico que almeja sua melhor e mais adequada expressão estética, é sem dúvida um dos maiores artistas de seu século. Nesse processo, a gravura foi um de seus veículos expressivos mais eloquentes, aquele que forjou o resultado final de sua linguagem. Sobre isso, o artista, que produziu em sua vida cerca de mil gravuras, nos diz:

“A gravura tem sido um meio de expressão fundamental para mim. Deu-me espaço para a libertação, para a expansão, para a descoberta. Contudo, no início eu era prisioneiro de suas limitações, de suas regras, de suas ferramentas e receitas muito dependentes da tradição. Eu precisei resistir, superá-las, e então um vasto reino de possibilidades estendeu-se diante dos meus olhos e à mão... Pouco a pouco, eu consegui domar esse despotismo. Posso usar uma sovela ou um buril, mas igualmente meus dedos, minhas mãos, uma unha ou uma velha chave de fenda. Eu também consegui romper com o uso do papel convencional, e comecei a imprimir sobre os papéis mais estranhos que se pode imaginar”. [J. Dupin,  in Miró Grabador, 1987]

A atenção de Miró volta-se para as artes gráficas no final da década de 20, a partir da frequentação de um círculo literário em Paris (Éluard, Breton), num momento em que o artista estava mais interessado em poesia que em pintura. De sua primeira ilustração para um livro, em 1927, até o fim de sua vida, ele produzirá cerca de 100 conjuntos de ilustrações literárias (entre as mais célebres: À toute épreuve, de Éluard (1947); Parler Seul, de Tzara (1950); Ubu-Rei, de A. Jarry (1966).

Na primeira metade da década de 70, Miró produz 21 litografias para o livro Maravillas con variaciones acrósticas en el jardín de Mirò (1975), obra do poeta e dramaturgo espanhol Rafael Alberti (1902-99). No instante de sua execução, a técnica litográfica estava completamente dominada, vivida e transgredida, e o artista se via entregue aos improvisos e experimentações. Miró adorava comparar essa sua postura como artista com a de um “jardineiro”: aquele que cuida e experimenta para melhor criar.

As composições ainda têm aqui algo do lirismo sedutor da cor e do gesto que marcou sua produção dos anos 60. Contudo, em várias das Maravillas, o preto aparece como um signo decisivo, apanhando no voo o olhar do espectador, avançando para o primeiro plano, empurrando as notas de cor a planos secundários e as manchas suaves para mais longe, organizando assim a profundidade espacial. Os grafismos sugerem um código, uma linguagem a ser desvendada, como um hieróglifo ou um pictograma. Não são propriamente abstrações, assim como as improvisações do jardineiro Miró não são automáticas, fluido inestancável. As formas aqui são parte de uma construção calibrada e refletida, distanciadas do universo caótico dadaísta. No jardim de Miró, a realidade é reordenada, transfigurada por seus signos-códigos pessoais, e reapresentada ao espectador. São outras realidades, visões internas, não superficiais.


Outra Maravilla de Miró para o livro de R. Alberti (1975). Litografia


Assim como Miró parece recriar a linguagem com a forma gráfica, Rafael Alberti quer fazer pintura (que, aliás, foi sua primeira vocação) com a poesia. Ambos os artistas buscam um território comum entre poesia e pintura: meios diversos para uma mesma semântica. As litografias de Miró não são ilustração num sentido estrito de complemento visual de um texto, mas parte essencial da obra, sem a qual esta não se realiza. Em Alberti muitas vezes uma palavra que não existe semanticamente é capaz de se equiparar às formas visuais de Miró somente por seu conteúdo fonético, por seu efeito acústico. Lá e cá, abundam balbucios, interjeições, onomatopéias: todo um divertimento fônico colorido, um jardim de sonho, maravilha com variações plantada por jardineiro de talento.

 “Aprendi [Miró] por meio de várias experiências o que significa fazer um livro, não apenas ilustrá-lo, o que é sempre secundário. Um livro deve ter a dignidade de uma escultura em mármore” (R. Margit, in  Joan Miró: Selected Writings and Interviews, 1986).





.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

p a p i l l o t a g e

.
.
.



p 
       p i
 l l o 
         t a
      g  e






Intervenção sobre pinturas de Odilon Redon:
 Borboletas. 1913. 64,8x49,8cm. coleção privada. 
 Evocação de borboletas. 1910-1912. Detroit  Institute of Arts

.°°°
Papillotage:| Mouvement des yeux qui les empêche de se fixer sur un objet. Papillotage des yeux. | Effet de ce qui éblouit et fatigue les yeux par des lumières, par des couleurs également vives. | Effet de ce qui éblouit l'esprit par trop de lumières et de couleurs, en parlant d'une oeuvre littéraire ou d'une oeuvre d'art. | Se dit des plis des draperies quand ils sont petits, mesquins, multipliés et trop rapprochés les uns des autres. | En sculpture, défaut d'un ouvrage qui offre trop de petites parties recevant des lumières étroites et portant de petites ombres. |  Il se dit d'une feuille imprimée, quand les caractères ont marqué double.


°°°

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Les enluminures de mon livre de vol...





(moi, papillon)
.
.
Qian Xuan. Peônias e borboleta (detalhe). séc. XIII. 
Pintura sobre seda; 55 x 96.9cm. Boston, Museum of Fine Arts



Beau papillon près du sol, 
à l'attentive nature
 
montrant les enluminures
 
de son livre de vol.

Un autre se ferme au bord
 
de la fleur qu'on respire - :
ce n'est pas le moment de lire.
 
Et tant d'autres encore,

de menus bleus, s'éparpillent,
 
flottants et voletants,
 
comme de bleues brindilles
d'une lettre d'amour au vent,

d'une lettre déchirée
 
qu'on était en train de faire
 
pendant que la destinataire
 
hésitait à l'entrée.



(Rainer Maria Rilke, Beau papillon près du sol -
tradução não sei de quem)



°°°

segunda-feira, 18 de julho de 2011

todo ojos

.
.
.
Intervenção sobre Cabeza de hombre, de Pablo Picasso. 



"Siempre es todo ojos.
No te quita ojos.
Se come las palabras con los ojos.
Es el siete ojos.
Es el cien mil ojos en dos ojos.
El gran mirón
como un botón marrón
y otro botón.
El ojo de la cerradura
por el que se ve la pintura.
El que te abre bien los ojos.
El ojo de la aguja
que sólo ensarta quando dibuja.
El que te clava con los ojos
en un abrir y cerrar de ojos."



(Rafael Alberti,
 "Los Ojos de Picasso",
 in Los 8 nombres de Picasso)
.
.

terça-feira, 12 de julho de 2011

l o o o n g o gesto

.
.

Cy Twombly. Wilder shores of love. 1985. 
Óleo, giz e lápis sobre compensado; 140x120cm. coleção privada





Este fruto:
amarmos.

Longo gesto o de apanhá-lo
no vento.


(Eucanaã Ferraz, "Este fruto",
 in Desassombro, 2003)

.
.

domingo, 10 de julho de 2011

Ars

.
.
Cy Twombly. Sem título. 2007. Acrílico sobre madeira. coleção privada



Quem disse que a pintura deve parecer-se com a realidade?
Quem o disse vê com olhos de não entendimento
Quem disse que o poema deve ter um tema?
Quem o disse perde a poesia do poema
Pintura e poesia têm o mesmo fim:
Frescura límpida, arte para além da arte
Os pardais de Bain Lun piam no papel
As flores de Zhao Chang palpitam
Porém o que são ao lado destes rolos
Pensamentos-linhas, manchas-espíritos?
Quem teria pensado que um pontinho vermelho
Provocaria o desabrochar da primavera?



(Sun Dong Po (1035-1101). 
Sobre a pintura de um ramo florido 
'Primavera precoce', de Wang
Tradução de Adelino Ínsua)

.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Débris

.
.
.
Egon Schiele. Cerâmica. 1918. Aquarela. coleção privada



À force de me cogner
contre tes murs
je me sens devenir
un gros éléphant gris
barrissant tristement
dans ton salon,
cassant par inadvertance
les Wedgwood de l’oncle Pierre,
la soupière K’ang-hi de grand-mère
et tout le service de la Compagnie des Indes
du cousin Antoine.
C’est ça le drame, quant on est
un gros éléphant gris
esseulé et maladroit :
le propre poids de l’inertie
peut casser bien des choses,
le désir, l’indifférence,
les porcelaines, le silence,
l’absence, toi, moi,
mais pas tes murs.
Ma grosse tête éléphantine
continuera inlassablement, stupidement
à cogner dessus
ad nauseam.
 

(Isabel Meyrelles, in Poesia, 2004)

°°

De tanto me chocar
contra teus muros
Sinto-me a me transformar
num grande elefante cinza
tristemente  bramindo
em tua sala
quebrando por inadvertência
os Wedgwood do tio Pedro
a sopeira K’ang-hi da avó
e todo o serviço da Companhia das Índias
do primo Antônio.
Esse é o drama, quando se é
um grande elefante cinza
segregado e desajeitado:
o próprio peso da inércia
pode realmente quebrar coisas
o desejo, a indiferença
a porcelana, o silêncio
a ausência, você, eu
mas não teus muros.
Minha grande cabeça elefantina
continuará incansavelmente, estupidamente
a bater
ad nauseam.




°
°

domingo, 3 de julho de 2011

Et in Arcadia ego

.
.
.

Nicolas Poussin. Et in Arcadia ego. 1638-1640. 
Óleo sobre tela;121x85cm. Paris, Museu do Louvre



Domingo nos campos da Toscana:
vinhas enfileiradas.
oliveiras ondeando morros.
ciprestes pontuando torres e castelos
como se os sons de Frescobaldi 
se condensassem em paisagem.

No entanto, 
                                 aqui e ali
ouço estampidos que rasgam o azul:
um caçador de domingo com seu cão
desce solerte a encosta
com sua arma na mão.

Caem pássaros que não vejo
                                           vitimados
sobre as folhas do chão.
Domingo nos campos da Toscana:
_ a morte também envia seus ruídos
nos momentos de perfeição.


°

(Affonso Romano de Sant'Anna, 
"Domingo nos campos da Toscana", 
in Poesia Reunida, 1965-1999)


°

sábado, 2 de julho de 2011

Requentado e ressentido

.
..


ocaso-arrebol da minha varanda da Mantiqueira: contrário de manhã.



Sonnet 116 - William Shakespeare


Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:

O no! it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.

Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come:
Love alters not with his brief hours and weeks,

But bears it out even to the edge of doom.
If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.

°

Que eu não me permita, à união de almas sinceras, 
aceitar impedimentos. Amor não é amor 
Se ao encontrar obstáculos se modifica, 
Ou se cede ao que o desvia, e logo se retira. 
Oh, não! O amor é um marco eterno, 
Que contempla a tempestade e não se abala; 
É a estrela que norteia a barca errante
Em mensurável altura, mas de insondável valor 
O amor não é um bufão do Tempo, embora
Sua foice apanhe da juventude o róseo semblante; 
O amor não se altera em breves horas e instantes, 
Mas resiste mesmo ao fim dos tempos. 
Contudo, se estou errado e alguém o provou, 
Então nada escrevi e jamais alguém amou.


°


(é minha a tradução capenga e apressada...
Ouçam e vejam  a doce Eleanor lendo este soneto a um interlocutor que, 
sem compreender patavina de Shakespeare, entende tudo, tudinho...)

.
.