terça-feira, 3 de agosto de 2010

Agosto

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P.-P. Prud'hon. A imperatriz Josephine em Malmaison. 1805.
 Óleo sobre tela; 244x179cm. Paris, Museu do Louvre


Agosto

 

Olho-me no espelho, “plácido lago de chumbo” (quem disse isso?). Queria ser eu a de dentro, a que rompe espaços mesmo em muralhas e ignora de que matéria são feitas as dores.
Faço o laço da blusa cor de carne, delicadeza retrô – souvenir de 1800. Eu e minhas fragilidades ... (memória: uma pintura de Prud´hon, Josefina numa sombra de Malmaison – o olhar denuncia a dor antecipada pelo iminente abandono). Pura melancolia.
Os lábios descamam, feridos pelos dias de febre. Os olhos, de tão lavados, perderam paradoxalmente o brilho; uma base escura e inchada os contorna e os oferece assim, em destaque, à apreciação do mundo – que não me vê.
Um vinco novo atravessa a superfície vasta vasta da fronte (memória: Marguerite Duras falando da cartografia do rosto que apenas viveu; nenhum pesar pelo fugir do tempo).
O espelho aponta os cabelos lisos e, no meio deles, uns dois, três, talvez meia dúzia de fios brancos.
Da cartografia do rosto passo à topografia do resto.
Visto os jeans e observo o corpo seco, esse suporte da alma, tagarela e dedo-duro. Vão perceber que está oco dos joelhos para cima. Apanho no espelho a sombra espessa dos cacos tomando a extensão dos tornozelos, inflando as pernas, abrindo a pele em farpas estreladas.
Não sangram mais.
No poço negro das órbitas penduram-se os dois globos baços, que lentamente se voltam na direção do chão, com um discreto ranger. Encontram os pés, meus pequenos pés. Observo-os enquanto calço os sapatos (outro primor de beleza inútil) e rogo o esforço das juntas, todas, para transformar em verdade a necessidade do movimento - que é indicação de vida... Saio, enfim, tilintando fragmentos num equilíbrio impossível. O arrastar dos cacos ecoa insuportavelmente pelo deserto restante. 

Vão notar que eu não estou.
              
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