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J.-A. D. Ingres. Mlle Caroline Rivière. 1805-1806.
Óleo sobre tela; 100x70cm. Paris, Musée du Louvre
Por volta de 1805-1806, Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) pintava o retrato da Senhorita Caroline Rivière. Era o terceiro retrato de membros dessa família que o artista realizava - e certamente um dos mais belos de toda a sua carreira de excelente retratista. Artista de difícil enquadramento dentro de um rótulo estilístico, Ingres, contudo, afirma desde bem cedo as particularidades de seu fazer artístico: em composições dominadas por um classicismo lúcido e límpido da forma, ele introduz defomações anatômicas expressivas que podem até incomodar, mas não perturbam a harmonia, funcionando muitas vezes como importantes linhas diretrizes de eixos visuais, criando curvas e contra-curvas, ou rimas formais...
À época de seu retrato por Ingres, a senhorita Rivière, na flor da idade, contava apenas 14 ou 15 anos. Ingres escolhe aqui um modelo renascentista, italiano, do retrato em 3/4, e a impostação da figura isolada contra um fundo de paisagem traz muitas reminiscências de pinturas do primo Cinquecento. Evocação concomitante, talvez, de uma jovem Monalisa em paisagem fria e de uma "belle jardinière"
Os grandes olhos negros da moça - as deformações de Ingres? - nos fitam não sem melancolia ao mesmo tempo em que se demoram sobre o espectador com uma lentidão evocadora de um apelo sensual. Ingres cria uma atmosfera ambígua que aproxima a menina da mulher. Como efeito geral, o artista sugere uma tensão que parece residir em alguns contrastes. A figura em pé - eixo vertical - vive, pulsa, enquanto a paisagem, horizontal imóvel e serena - talvez a de uma amanhã invernal -, adormece, repousa (como repousam, mais que simplesmente pousam, os grandes olhos da moça sobre os nossos). Os lábios vermelhos, grossos e úmidos, adornam e aquecem um rosto de lua cheia que se oferece à nossa contemplação completamente isolado contra o azul do céu. O conjunto da cabeça se expõe como sobre o pedestal do pescoço de curva alongada. O ar frio da obra é acentuado pelo vestido branco cuja alvura é ressaltada pela luz: uma reinvenção Império do chiton clássico. Às horizontais da paisagem, Ingres contrapõe muitas curvas, desde a da moldura na porção superior à do arco das sobrancelhas, as voltas do arminho nos braços, os ombros, o decote... Pela sensualidade de sua figura, a menina-moça se destaca, se separa, da paisagem gélida de sonho e nos promete uma vida mais concreta, mais real, mais intensa, bem além do aprendizado de um 'realismo' vaneyckiano que conhece texturas e detalhes: nos promete um desbrochar pleno logo adiante.
Mas disso não sabemos, pois a flor plena, como a rosa de Malherbe, ficou na promessa, morrendo Caroline no ano seguinte ao da pintura deste seu retrato, ainda menina
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"Rosa de Malherbe": a expressão tem origem num poema do francês François Malherbe (1555-1628), escrito em homenagem à filha morta de um amigo, o sr. Du Périer:
"(...) Mais elle était du monde où les plus belles choses |
Ont le pire destin; | Et rose elle a vécu ce que vivent les roses, |
L'espace dun matin."
[Mas ela pertencia a um mundo em que as mais belas coisas |
têm o pior destino; |
e, rosa, ela viveu o que vivem as rosas, |
O tempo de uma manhã.]
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