segunda-feira, 26 de abril de 2010

Fides & Spes

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Eugene Boudin. Mar em Antibes.


Sonnet 116 - William Shakespeare


Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:

O no! it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.

Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come:
Love alters not with his brief hours and weeks,

But bears it out even to the edge of doom.
If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.

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Que eu não me permita, à união de almas sinceras,
aceitar impedimentos. Amor não é amor
Se ao encontrar obstáculos se modifica,
Ou se cede ao que o desvia, e logo se retira.
Oh, não! O amor é um marco eterno,
Que contempla a tempestade e não se abala;
É a estrela que norteia a barca errante
Em mensurável altura, mas de insondável valor
O amor não é um bufão do Tempo, embora
Sua foice apanhe da juventude o róseo semblante;
O amor não se altera em breves horas e instantes,
Mas resiste mesmo ao fim dos tempos.
Contudo, se estou errado e alguém o provou,
Então nada escrevi e jamais alguém amou.



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Perdoem-me a tradução capenga e apressada. Conheço em português apenas a tradução da brava Bárbara Heliodora, que, apesar de rica, é um pouquinho falha. Se quiserem se deleitar com histórias de amor, ouçam e vejam a doce Eleanor lendo este soneto a um interlocutor que, sem compreender patavina de Shakespeare, entende tudo, tudinho...




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Sobre Fides e Spes (Fé e Esperança): Charitas - que há quem traduza por Amor (em vez de caridade), e eu aprovo -, completa o trio das virtudes cardeais. Fé e Esperança parece ser o que resta quando nos deparamos com a natureza utópica do amor cantado acima. E, ademais, ao ler este soneto me vêm em ecos, ao fundo, as lindas palavras da espístola de (são) Paulo. Porque, parece,  é quase sempre o discurso do desamado, que precisa dizer mil vezes, mil vezes reiterar que o amor é isso, o amor é aquilo... pra convencer, talvez, pra fazer crer. Talvez.

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domingo, 25 de abril de 2010

Nababesca

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Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


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Nababesco: adj. derivado do subst. 'nababo',
principe ou governador de província na Índia muçulmana;
aquilo que apresenta muito luxo, pomposo, ostentador...

Poema: Adélia Prado, Ensinamento.
Imagem: Amarilis sobre o original Stove with kettle & cup, in httpwww.flickr.comphotosjooliree2209322051

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sábado, 24 de abril de 2010

(in)diferente

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Odilon Redon. Pimentão e limão sobre toalha branca.




Fim de caso.
Acabou a conversa. Acabou a história.
Vocês podem ver que eles até que ficam bem na foto, que fazem um bonito par verde-amarelo. E nem são tão diferentes assim... Neste universo vastíssimo de muitos reinos e inumeráveis espécies, eles se cruzaram por obra de quem sabe qual desígnio misterioso:  têm aproximadamente a mesma conformação, o mesmo tamanho, ocupam o mesmo espaço e se encontraram um belo dia sobre a mesmíssima mesa. Arriscaria dizer que esse verde profundo nasceu pra esse amarelo intenso. Esse verde precisa da pitada de vermelho que só esse amarelo tem; e tudo que esse amarelo quer é o azul que faz desse verde - e apenas esse verde -  o que ele é.
Mas o verde se vira de repente e num giro de corpo toma a trilha da oblíqua que indica o movimento. Até o nariz naturalmente empinado ele alinha à diagonal da fuga. Vai-se. Amarelo se atordoa, se desequilibra ligeiramente, apóia-se no esteio da borda bordada (sim, as paralelas da estabilidade), mas perdido... 
Agora só suas sombras se seguem, e quase se unem, azul-lilás, no descampado da toalha.
Criaram diferença.

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'Diferente', do latim differentem, é particípio presente do verbo differre, que significa 'separar-se um do outro', 'afastar-se um do outro'. Um do outro. A 'in-diferença ', por sua vez,  que pena, não nega esse  'diferente', mas a deferência...
O indiferente às vezes coincide com o diferente, e assim todo os abismos se criam.
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Noturno sem noite

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Adolph von Menzel. Vista para Marienstrasse. 1867.
Óleo sobre tela. Oskar Reinhart Foundation, Winterthur



Case d'ombra



Le nostre; e chiusi dentro noi
mentre di là dalle finestre naviga
l'estate con tutte le sue
                                            flotte.
Le soglie, sbarrate da un'ombra
che indugia su di noi
come sopra un esitante stormo

la notte

(...)


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(Casas de sombra

as nossas; e nós ensimesmados
enquanto além das janelas navega
o verão com todas as suas frotas.
Os umbrais, cerrados por uma sombra
que demora sobre nós,
 como sobre uma indecisa corja,

 a noite...)



Bruna dell'Agnese. "Case d'ombra", in Vuoto in giardino
Tradução: Amarilis (Letícia)



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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Blue

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O infortúnio tinha colocado
as roupas da mentira
Eram de um vermelho bonito
cor do sangue do coração
Mas seu próprio coração era cinza.
Debruçado sobre o rebordo,
ele me cantava o amor.
Sua voz rangia como a polia.
E eu
em meus trajes de verdade
eu me calava e ria
e dançava
no fundo do poço.
E sobre a água, que também ria,
a lua brilhava contra o infortúnio
A lua ria-se dele



Poema: Jacques Prévert. Chanson (Soleil de nuit)
Imagem (modificada): Paul Klee. Highway and Byways
Tradução: Amarilis
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Sincera

 
       A etimologia é surpreendente.
      Eu, quando menina, fui a versão de saias do Marcelo (o do martelo e do marmelo), renomeando as coisas e querendo mudar o nome de tudo que eu achasse que não se parecia com o nome que tinha. Queria sempre saber a razão de as coisas se chamarem como chamavam. Sempre que conhecia uma pessoa um pouco mais, logo achava uma palavra que lhe coubesse, perfeita. Fazia listas de palavras, que fazia coincidir com listas de cores em milhões de tonalidades que, não por acaso, tomavam nomes de coisas, naturais ou não... 
       Muito mais tarde, na graduação em artes plásticas, aprendendo a fazer aquelas tabelinhas de cores, passei pra minha lista, me lembro, um 'branco sincero':  um branco que não era beeeeeeem branco. Era um branco mais ou menos; branco marfim. O branco que eu conseguia, meio contaminado por idas e vindas do pincel mal lavado. Branco simples. O branco puro puro é puro artifício.
      Pois esses dias, preparando uma aula de história da cerâmica, dei de cara com a etimologia da palavra 'sincero' e tive de ir conferir.
     Há controvérsias, mesmo porque parece lenda: 'sincero' viria do latim 'sincerus', composto por 'sine''cera'. Sincero seria então literalmente 'sem cera', sem verniz,  "assim como o mel purificado". "Purum sine fuco, et simplex, ut mel sine cera", escreveu Donato a Terêncio.
       Se non è vero, è ben trovato, e eu adorei!
      Sincero seria, portanto, sem cera, sem verniz, sem brilho, sem máscara, sem maquiagem, sem artifícios que ocultem a própria natureza.
      Se fosse uma cor, seria meu branco pintado; se fosse uma flor, a sem-graça margarida, tadinha, que só é simplex demais.
(e eu sou a amarilis mais margarida que existe...)






sábado, 17 de abril de 2010

Fuori corso

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Paul Gauguin. Um jardim abandonado. c.1884.
Óleo sobre tela; 65 x 54 cm. Col priv



Parole d'amore e di preghiera,
come inutili monete fuori corso,
giacciono nel giardino sfiorito
dove le abbiamo abbandonate.


(Ma quel luogo dimenticato, aperto
al vento; quel luogo inspiegato
e il momento che sussiste inalterato
al di là di macerie di memorie,
dischiusero per noi, smarriti eredi
del quotidiano, un passaggio segreto,
imprevedibile, insperato.)


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Palavras de amor e de prece
como inúteis moedas fora de circulação
jazem no jardim sem viço
onde as abandonamos


(Mas aquele lugar inexplicado
e o instante que permanece inalterado,
para além de memórias em ruínas,
descerraram para nós, desolados herdeiros
do cotidiano, uma passagem secreta
imprevisível, inesperada)




Bruna dell'Agnese, "Passaggio segreto", in Vuoto in Giardino.
Tradução de Amarilis, a pedido do Fernando.

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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Tautologia

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p    r  e   t o eb r      
 a  n  od    e  n  t   r   
    o  e fo r alu z es 
  ombr  a





r       e      v     e    r  b  e r ass o  n  â    n     c      i       a



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(Fotografias:  Amarilis, no ano 5 do quarto 16)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Douceur d'avril

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Amarilis. Um dia azul na Mantiqueira em 2009
 (não era abril, mas o igualmente adorável e azul setembro)



"J'ai peur d'avril, peur de l'émoi
Qu'éveille sa douceur touchante (...)

En décembre, quand l'air est froid,
Le temps brumeux, le jour livide,
Le coeur, moins tendre et plus étroit,
Semble mieux supporter son vide.

Rien de joyeux dans la saison
Ne lui fait sentir qu'il est triste;
Rien en haut, rien à l'horizon
Ne révèle qu'un ciel existe.

Mais, dès que l'azur se fait voir,
Le coeur s'élargit et se creuse,
Et s'ouvre pour le recevoir
Dans sa profondeur douloureuse;

Et ce bleu qui lui rit de loin,
L'attirant sans jamais descendre,
Lui donne l'infini besoin
D'un essor impossible à prendre (...)"

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Tenho medo de abril, medo da emoção
Que desperta sua comovente doçura (...)

Em dezembro, quando o ar é frio,
 o tempo brumoso, o dia lívido,
o coração, menos suave e mais apertado,
parece melhor suportar o seu vazio.

 Nada de alegre na estação
 lhe faz sentir que é triste
nada nas alturas, nada no horizonte
 revela que um céu existe. 

 Mas, assim que o azul se mostra,
 o coração se amplia e esvazia
 e se abre para recebê-lo
em sua profundeza dolorosa;

E esse azul que lhe sorri de longe,
atraindo-o sem jamais descer,
 dá-lhe a necessidade infinita 
de um impulso irrealizável.



Poema (trechos): Douceur d'avril, de R.-F. Sully Prudhomme (1839-1907)
(minha tradução)
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domingo, 11 de abril de 2010

The mid-autumn moon

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Na China, a noite entre o 14°e o 15° dia do oitavo tavo mês lunar do Ano Novo é especial.  Mas o luar de meados de outono é somente uma pequena parte de um tempo de muitas festas, um tempo de celebrar as colheitas e fazer votos para um futuro de paz e alegria. Na noite do luar de meados do outono, de acordo com uma milenar tradição, a benfazeja lua que os chineses acreditam ser a mais brilhante do ano vem adornar uma das reuniões mais esperadas: a das famílias, que então se reúnem para comer, beber, festejar a vida e reforçar seus laços. Aqueles que porventura estiverem ausentes lastimam.


Shên Zhou (1427-1509), um dos mais talentosos artistas da dinastia Ming (1368-1644), pintou, por volta de 1486, uma delicada cena do festival de meados de outono (Watching the mid-autumn moon. Nanquim e tinta colorida sobre papel; 30,4 x 134, 5cm. Boston, Museum of Fine Arts). Os convidados celebram em torno de uma mesa à direita. A rainha da festa é discreta: uma pequena mancha clara flutuando no canto superior esquerdo - contraponto. E Shên Zhou reflete então, melancólico, no poema que relaciona à imagem, sobre a passagem do tempo:





"(...) How many mid-autumns can an old man have?
He knows this passsing light cannot be held
Time changes men; it does not change the moon.
The old moon and young men are poles apart
How dull is youth; it knows not this
every year it sees the moon and every year is glad
But old men have eyes  and see the same return...
And we, we are full of memory (...)"

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Tseng Hsien-ch'i e Richard Edwards,
in Shên Chou in Boston Museum, 1954

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Vejam o poema do Fernando Campanella e a música tradicional chinesa que ele descobriu

Nefelibata

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"(...) Esta ignorância humana.
Este silêncio do universo.
A sabedoria.
Hoje eu queria estar entre as nuvens,
na velocidade das nuvens, na sua fragilidade,
na sua docilidade de ser e deixar de ser.


Livremente



Sem interesse próprio.
Confiante.
À mercê da vida.
Sem nenhum sonho de durarem até o ano 2000,
de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim…

 

(Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses ocasos!)




Hoje eu queria andar lá em cima nas nuvens,
com as nuvens,
pelas nuvens,
para as nuvens…"


(Texto de Cecília Meireles, in Compensação; fotos: Isabela de Andrade)
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 'nefelibata': adj.: que ou quem vive nas nuvens; 
o que não obedece às regras literárias (diz-se de escritor);
que ou quem é muito idealista, vive fugindo da realidade (Houaiss).


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Pleonasmo

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Shen Zhou (chinês, 1427–1509). Dinastia Ming (1368-1644).
Paisagem e poema. nanquim s/ papel; cada folha 38,1 x 65 cm. Boston, Museum of Fine Arts



Os chineses sabiam que paisagem e poesia são a mesma coisa, e aqui - como em inumeráveis outras cenas como esta - o pleonasmo não é crime, mas simplesmente uma licença poética.

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Sonhos

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Vincent van Gogh. Passeio ao anoitecer.  Saint-Rémy, 1889-1890.
óleo s tela; 49,5 x 45,5cm. São Paulo, MASP



No MASP, esta é a minha pintura predileta, e certamente minha pintura predileta deste meu predileto pintor. Porque ela resume, eu creio, tudo o que em Van Gogh me comove: a genialidade do pintor, do colorista, a sensibilidade do homem e o sonho de ambos. Vê-la é resgatar a memória de um tempo já bem distante em que, encantada, na Unicamp, iniciava o caminho da história da arte. Tardes de sábado no MASP com grupos de alunos. Hoje só posso retomar as palavras publicadas no livrinho que tenho diante de mim, onde diz Jorge Coli:

"Estamos no crepúsculo. A crista das montanhas isola o céu no terço superior; as encostas são azuis, de intensidades diferentes, onde domina o mais escuro, azul de pedra preciosa, de bela safira, dispostos em pinceladas oblíquas e paralelas. No céu, o mesmo ritmo inclinado se prolonga, traduzindo o pôr-do-sol num amarelo ocre, como uma resposta incendiada às colinas mais sombrias. Mais ao alto os tons são perpendiculares ao horizonte: uma cor esfumaçada primeiro, um azul aquático, profundo, enfim. No lado direito, perto do centro, o crescente se aureola de pinceladas concêntricas, acobreadas. Unindo a terra ao céu, ciprestes verdes, aguçados, deixam-se embrasar também pelo pô-do-sol. (...) E no interior desse mundo ordenado e fremente, em meio às cores magníficas, no eixo vertical do quadro, envolvidos pelas oliveiras que giram sobre si mesmas, no primeiríssimo plano, um casal passeia: viandantes, peregrinos. O vestido dela é amarelo como o pôr-do-sol, a roupa dele é azul como as sombras das montanhas. Eles trazem, em meio ao verde e cinza das oliveiras, as cores lá do alto. Com um gesto  a mulher nos faz um aceno. Nenhum dos dois possui olhos, nariz, boca. Mas em volta do rosto vazio dele, o colar, a coroa ruiva dos cabelos e da barba de Vincent...."

(J. Coli. Vincent van Gogh. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 51-53)





 Aqui, como em toda a pintura de Van Gogh, a luz é sólida, feita de pinceladas grossas, evidentes. A luz se materializa, é constituída pela própria cor. Isso e mais a hora crespuscular que evoca a solidão, a necessidade de abrigo e conforto ao bicho humano - porque diz que a noite vem vindo, metaforicamente, ou não... -, isso cria uma atmosfera onírica ímpar. É a hora do devaneio, da exasperação dos sonhos. Ele sonhava ardentemente a viagem e a companhia para a viagem, para a peregrinação, peregrino que sabia ser. E esse quadro me fala muito, muito mais do que sua excepcional qualidade artística (uma jóia do museu paulistano). Me fala além da moldura, diretamente ao sonho do homem, e me fala muito claramente quando me vejo ali, ao seu lado, de vestido amarelo, sonhando, também eu, a companhia pra viagem no final do dia.




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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Mais estrelas

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                                                                                as
                 
                                                                   estrelas

deixo
            que elas
 rolem
             céu  a
                 b
            a
     i
       x
          o



                    s                      s
                        o    l   t   a    


do seu facho
frio,
iridescente,
ricochete rente
ao chão adormecido.
Cobres,
estrelas de pobre,
moedas
que dobram na queda,
vão metal.
O mesmo que falta
às nossas mais altas
intenções, e nos deixa
(é sempre a mesma queixa)
nesse vai-da-valsa :

com as mãos repletas
de palavras
                            certas,
de moedas
                            falsas.


(Desprego as estrelas, de Claudia Roquette)




Intervenção sobre Edvard Munch. Noite estrelada. 1922-24.
Óleo s/tela; 40x119cm. Oslo, Munch Museet

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