segunda-feira, 23 de julho de 2012

conselho-poema

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A internet, em especial o Facebook, tem se transformado em um irritante e cansativo mostruário de frases feitas. Ali as pessoas publicam diariamente seus estados de espírito através de pensamentos e imagens prontos, pescados de outros sites, exaustivamente compartilhados, muitas vezes deturpados. 

Um poema de Fernando Pessoa parece ser um dos campeões de publicação, um conselho em forma de poesia que, infelizmente, de tão rodado e gasto, acabou ganhando, para mim, ares de extrato de livro de auto-ajuda. Peguei certa birra dele... Até que há pouco, passeando pelo  claustro do mosteiro dos Jerônimos em Lisboa, deparei-me com o túmulo do poeta: um contraponto de sobriedade e simplicidade à exuberância rebuscada das arcadas manuelinas. Puro decorum. Maravilhoso. Uma pausa de silêncio única na altiloquência do claustro. E ali, gravado no mármore, reencontrei o mesmo batido poema. Definitivo, certeiro: "Para ser grande, sê inteiro..."




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domingo, 27 de maio de 2012

surpresa

para  a minha amiga Elaine,  
que sabe que é preciso nunca desistir 
de  regar as plantinhas
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Quem tem gatos em casa sabe o quanto é difícil (ou impossível) manter as plantas inteiras (além dos sofás, das cortinas, tapetes, colchas...). Já tentei inúmeras vezes: compro vasos, planto, rego, cuido e num belíssimo dia encontro as coitadas comidas, viradas, pisadas... É desanimador; tanto, que desisti. Fiquei com uma série de vasos cheios de terra, uma cheflera capenga e meia dúzia de violetas sem flor e igualmente capengas que volta e meia resgato do chão.


As violetas são das minhas plantinhas prediletas, eu acho que por causa da sua simplicidade, pela beleza despretensiosa e variada, pela persistência, nem sei... Sei que me comove encontrá-las no supermercado, tão baratinhas, ou ganhá-las de brinde em qualquer evento. Uma vez ganhei uma, pelo dia das mães, na saída do bandejão da Unicamp. O fato é que as minhas há anos e anos não dão flores, quando muito põem botões que não vingam; vegetam, e eu nem olho mais para elas. É a Amélia quem cuida pacientemente e toda sexta-feira as rega, tira as folhinhas mortas, arruma a terra... Eu olho e penso comigo: inútil.

Mentira. 

Esta semana estava eu estendendo roupa na área de serviço quando dei de cara com a  incrível obstinação da natureza. Encontrei isso que se vê na fotografia acima: do cantinho ao qual eu a tinha relegado, a minha violeta mais prejudicada - linda, toda pintada, chamuscada de manchinhas roxas - abriu de repente não um botãozinho frouxo, mas uma porção de flores. Parecia me olhar e dizer "tá vendo só do que eu sou capaz, apesar de você?". Lembrei das muitas outras que joguei fora... Sim, tem que regar. Foi meu presente de aniversário, simbólico, humilde e evidentemente muito belo.




terça-feira, 15 de maio de 2012

Nudez

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Amedeo Modigliani. Nu reclinado - grande nu. c.1919. óleo sobre tela; 72,4 x 116,5 cm. Nova Iorque, MoMA



Quando estás vestida,
ninguém imagina 
os mundos que escondes
sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,
não temos noção
dos astros que luzem
no profundo céu.

Mas a noite é nua
e, nua na noite,
palpitam teus mundos
e os mundos da noite.

Brilham teus joelhos.
Brilha o teu umbigo.
Brilha toda a tua
lira abdominal.

Teus seios exíguos
- como na rijeza 
do tronco robusto
dois frutos pequenos -

Brilham.) Ah teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
ficam nus também;
Teu olhar mais longo, 
mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
bóio, nado, salto,
baixo num mergulho
perpendicular!

Baixo até o mais fundo
do teu ser, lá onde
Me sorri tua alma
nua, nua, nua.


(Nu, Manuel Bandeira)





terça-feira, 24 de abril de 2012

aonde

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N o c é u a z u l n u v e n s n u a s
No teu olhar céus febris
P a s s o s m a i o r e s q u e a s r u a s
C a n ç õ e s q u e e u n u n c a f i z
(...)

P r a o n d e f o r e s e u v o u
Aonde  flores  eu  fujo
T e d o u m e u p o e m a s u j o
q u e e u n ã o s e i f a z e r t o a d a
M e n o s q u e s e q u e r é t u d o
T u d o q u e s e t e m é n a d a

(Zeca Baleiro, Trova)

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segunda-feira, 16 de abril de 2012

apenas

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a árvore é um poema
não está ali
para que valha  a pena

está lá
ao vento porque trema
ao sol porque crema
à lua porque diadema

está apenas


(Leminski)


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terça-feira, 3 de abril de 2012

beabá

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(fotografia da net, retrabalhada por mim)

Eu me cubro com o A da palavra farpada
eu me cubro com o A que traslada
(e a memória é a ignição de uma idéia
sobre dunas de pólvora).

Eu me deito na décima-terceira casa, 
eu me deito sob a letra de mãos dadas
M: escondo entre escombros
o sentimento que sobra.

Isto, sim, me comove,
o anel, quando soa
e engloba, envelopa, 
remove a pessoa 
- letra O, de vertigem e pó,
que soçobra.

Eis o despenhadeiro,
gargalo da fera,
eis o R que trai, apunhala, 
desterra - eis o último tiro
sem margem de manobra.




(Cláudia Roquette, 
Margem de manobra)

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segunda-feira, 26 de março de 2012

Héstia

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To whom I owe  the leaping delight 
that quickens my senses in our waking time
and the rhythm that governs the repose of our sleepingtime...
(T. S. Eliot)






Certa vez, muitíssimos anos atrás, a noite nos apanhou, a mim e a meu ex-marido, namorando a casa que estávamos construindo. De projeto ambicioso, nunca ficava pronta, nunca parava de exigir dinheiro. Anos construindo, ansiando dia após dia, mês após mês, por ver o resultado acabado. Naquele finzinho de tarde, me lembro bem da emoção que senti quando vi, pela primeira vez, a luz acesa lá dentro. Pensei comigo: agora essa casa tem  alma, agora tem vida, agora é uma casa, não mais uma obra. 
E disso os antigos sabiam: é o fogo - luz e calor - que dá vida à casa. Os gregos criaram Héstia, a deusa filha de Cronos, da primeiríssima geração olímpica: é a personificação da chama sagrada que protege, enquanto aquece e ilumina, os lares; a chama em torno da qual a família se reúne e se aconchega. As residências gregas possuíam um altar onde noite e dia uma chama era cuidada, mantida viva. A palavra 'lar', aliás, vem de 'lareira', denotando a mesma ideia trazida por Héstia.

Nada conforta mais o homem do que a simples vista de sua casa iluminada quando a noite avança. É nesse instante que a casa, o edifício inanimado, se transforma em lar. 
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sábado, 24 de março de 2012

naveave

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Vista da Mantiqueira em Gonçalves (MG). Março de 2012



Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso
Caminho.


(Hilda Hilst, Trovas de muito amor para 
um amado senhor I, in Exercícios)

também aqui
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quarta-feira, 21 de março de 2012

Sertã ao lume brando

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Antoine Vollon. Natureza-morta com frigideira, jarra, garrafa e ovos sobre uma mesa
s/d. coleção privada


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Sempre me impressiona e encanta a amplidão da língua portuguesa, as sutilezas nas variações de construção e de vocabulário que separam, como o próprio Atlântico, a nossa língua portuguesa daquela sua matriz lá do outro lado do oceano.
Hoje, pesquisando para uma tradução uma receita medieval de ovos fritos à judaica, fui parar numa página da net em que um de nossos irmãos de língua ensinava a fazer ovos estrelados, digamos,"à poesia":

Ingrediente: 4 ovos; 30 g de manteiga; sal q.b.
Preparação: Deita-se a manteiga na sertã [ou seja, na frigideira: a palavra não consta do Houaiss] ou prato próprio e leva-se ao lume brando. Quando começar a aloirar, deitam-se-lhe os ovos previamente partidos para um pires. Devem ficar com a gema inteira. Quando a clara estiver coalhada, está pronto. De vez em quando, durante a fritura deve dar-se à sertã um ligeiro movimento para os ovos não pegarem no fundo.
Observações: Habitualmente os ovos estrelam-se com bons resultados em azeite fino.


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